domingo, 24 de março de 2019

EVIDÊNCIAS


                                                    EVIDÊNCIAS




Naquela semana que antecedia ao dia dos pais, a professora do jardim da infância, pediu às crianças que fizessem um desenho bem bonito para o pai e também ensinou uma bela canção para elas cantarem no domingo, do dia dos Pais, quando iriam entregar o lindo desenho que tinham feito.
Era uma tarde fria de agosto e Paula foi buscar sua filha Raquel na escola e a encontrou encolhida em um canto do pátio com os olhos vermelhos de chorar. Paula ficou apreensiva, o que teria acontecido?
-- O que aconteceu minha filha?
-- Todos  os meus colegas tem pai, eu não. Por quê?
-- Tu tens pai sim. Ele se chama Luis Joaquim Bordado Rosado.
-- Então por que eu não o conheço?
-- Bem isso é uma história muito longa. Falamos disso em casa. Agora vamos até a padaria e comprar um pão quentinho para nós. Vem minha filha.
Paula queria distrair a filha, para não precisar contar a verdade para a menina, que tinha apenas cinco anos, e que não iria compreender  sua história. Também não queria negar o fato.
Paula sabia que tinha errado. Ela sempre foi muito  desfrutável , desde a adolescência. Seu próprio pai havia mandado ela embora de casa, por causa de seu comportamento escandaloso. Ela saiu de sua cidade aos 18 anos e nunca mais entrou em contato com sua família.
 Ela era uma jovem  técnica de enfermagem e se apaixonou perdidamente pelo doutor Joaquim, que era um homem alto e forte, moreno de olhos verdes, lindo e com um sorriso sedutor, mas  ele era casado e tinha dois filhos.
Ela tinha conhecimento de que Joaquim jamais deixaria sua família, mas queria conquistá-lo de qualquer jeito. E conseguiu sair com ele algumas vezes. Desses encontros nasceu sua linda filha Raquel. E o doutor a reconheceu como filha, e, inclusive, queria criar a menina. Mas Paula não quis e o proibiu de se aproximar dela.
Paula foi enviada para outro setor do  hospital. E afastou-se definitivamente dele.  Ele sempre esteve consciente a existência da filha, apenas não a visitava, mas mandava mensalmente através de seu advogado uma boa quantia em dinheiro para o sustento de Raquel, e assim nada faltava à menina. E procurava saber se ela estava bem, e muitas vezes a observava de longe, na entrada de escola.
Naquela tarde logo que elas chegaram a casa Paula preparou um lanche para filha e ligou a TV  e sintonizou no canal de desenhos que ela gostava, e não voltaram a falar mais do assunto.
Mas Raquel não havia esquecido, só não queria aborrecer sua mãe. Sua mãe era muito nervosa e por qualquer coisa ela gritava com a filha. E naquela noite antes de dormir a menina idealizou como seria seu pai. E em sua imaginação infantil, viu o pai como um príncipe dos contos de fadas, que no fim sempre salvava a princesa do perigo. E dentro dela nasceu a esperança de que um dia ele viria visitá-la. E passou a esperá-lo em datas especiais, no  seu aniversário...Natal...Páscoa...
Os anos foram passando e Raquel foi se decepcionando com seu pai e por tabela com todos os homens do planeta.  Pois sua mãe tivera vários namorados e ela assistiu a muitas brigas de sua mãe com os seus namorados, e todos eles tinham ido embora.
Raquel sempre foi muito quieta, não ia a festas e tinha poucos amigos. Agora com vinte  anos, as suas únicas amigas  eram Lizandra e Gabriela que namoravam Tiago e Leandro. E Carla, irmã de Tiago, que era sua colega desde o colegial.
Era com esse grupo ela saia algumas vezes. Nunca tinha se interessado em namorar, seu conceito a respeito do gênero masculino era muito baixo. Não acredita que os homens pudessem amar.
Mas Tiago chamava muito sua atenção. Ele era um cara legal, alegre, divertido e parecia gostar de Lizandra. Pelo menos eles não brigavam tanto, como Gabriela e Leandro. E ela não percebia porque aqueles dois, Leandro e Gabriela ainda estavam juntos. Estavam sempre de mau humor e fazendo pirraça um para o outro.
Raquel entendia que o amor deveria levar a paz, a harmonia entre o casal. Se não fosse assim não era amor. Mas como ela nunca tinha amado, não podia dar opinião. Apenas analisava os amigos.
Um dia Carla disse a  Raquel:
-- Meu irmão vai terminar com a Lizandra.
-- Como assim? Ele te falou alguma coisa?
-- Não, mas eu o observo e vejo o jeito dele. E o conheço muito bem.
-- Está imaginando coisas... Ele gosta dela!
-- Acho que não.
-- Coitada! Acho que ela gosta muito dele.
-- Não sei não.
-- Por que tu estás me falando isso?
-- Nada... Só acho que ele está ligado em outra pessoa...
-- Vamos torcer para que eles continuem. Formam um lindo casal, não achas Carla?
-- Talvez...
Os dias passaram, o fim do ano estava próximo e havia muito  que estudar para as provas. E foi um longo tempo que Raquel não saiu com a turma. E nesse período foi que Tiago terminou o namoro com Lizandra.
Lizandra estava inconsolável, queria Tiago de volta. E foram tantos os arranjos que eles reataram o namoro. Mas Raquel notava que não era mais a mesma coisa.
Ela comparava a relação de Tiago e Lizandra com uma peça de cristal que tinha se quebrado, e que foi colada, mas não ficou igual ao que era antes. A marca permanecia.
Elas estavam de férias, o Natal estava se aproximando e Raquel e Carla passavam juntas. Raquel costumava dormir na casa da amiga e isso fez com que ela e Tiago conversassem mais.
Quando Raquel estava com Carla, Tiago dava um jeito de não sair e ficava por ali esperando a oportunidade de participar da conversa delas. Elas se davam muito bem e riam muito das bobagens que diziam e faziam.
Os pais de Carla gostavam muito de Raquel, que era uma moça serena e muito educada e zelosa com todos. Mesmo sabendo que Paula, a mãe de Raquel, era muito namoradeira, eles percebiam que a filha era muito ponderada.
Uma tarde, quando estava de folga em casa,  Tiago foi questionado por sua mãe:
-- Tu gostas muito da Raquel?
--  Sim eu gosto...
-- Mas não queres ser apenas amigo dela.
-- Por que tu estás falando isso?
-- Pelo jeito como  a olhas.
-- Eu... Como eu olho para ela?
-- Com um jeito diferente, e que eu nunca vi quando estás com a tua namorada.
-- A Lizandra... A coisa está esquisita mãe. Eu tinha terminado tudo, e ela implorou para voltarmos. Disse que precisávamos de outra chance. Ok. Concordei, mas não está legal.
-- Claro que não está legal. Tu não gostas mais dela. Teus olhos estão em Raquel, até tua irmã já notou.
-- Bah... Ela não falou nada para a Raquel, falou?
-- Acho que não. Pedi para ela não se intrometer nisso. É coisa tua. Tu  que precisa resolver, é a tua vida. Só te peço que não namores a Raquel se não tiveres certeza do que queres.
-- Eu preciso pensar sobre isso. Não sei mesmo.  Mãe eu estou indo, prometi ao pai que não me atrasaria.
Ele deu um beijo em sua mãe e saiu para a loja de seu pai.
Tiago estudava Ciências Contábeis à noite e durante o dia trabalhava na empresa do pai,  uma Revenda Multimarcas de Motocicletas. E ele gostava muito de estar lá vendendo as motos, falando sobre o desempenho de cada máquina. Ele mesmo só andava de moto.
Naquela noite depois da faculdade, já em casa, Tiago  tomou um copo de leite e foi para seu quarto. Deitou-se, mas não conseguiu dormir. Aquilo que a mãe havia falado não saia do seu  pensamento. Ele sabia que o namoro com Lizandra  não tinha mais jeito. Antes ela exercia uma sedução sobre ele, mas agora não existia mais nada. Ela aparentava ser apaixonada por ele, mas amor unilateral não dava certo.
Então decidiu que após as festas de fim de ano, ele teria uma conversa definitiva com ela. Mas quanto a ele gostar de Raquel... Claro que ele gostava dela, ela era uma garota muito legal, sempre na dela, não se envolvia em fofocas, era divertida, inteligente, espontânea, elegante e muito bonita... Ela tinha um rosto perfeito, aqueles olhos verdes eram fascinantes, os cabelos escuros e muito sedosos, e a boca... Ah! A boca era sedutora. Raquel era muito provocante, e despertava nele o apetite sexual...
E desde aquele dia, ele passou a olhar para Raquel com outros olhos. E começou a descobrir mais predicados nela. A lista já era bem extensa. E se deu conta de que ele ficava nervoso quando a via, seu coração se agitava e seu desejo também.
Mas com Raquel não poderia se enganar, não poderia brincar. Se ele se aproximasse dela teria que ser para assumir um compromisso sério. Ele sabia que dona Carmem e seu Ângelo, seus pais, não o perdoariam.
Tiago decidiu deixar rolar, ia dar um tempo depois que terminasse seu namoro com Lizandra. Afinal eram todos da mesma turma. Mas ia ficar de olho em Raquel.
Raquel por sua vez, notou que Tiago a olhava muito, a encarava algumas vezes e ela sustentava o olhar quando estavam sozinhos. Ela tentava disfarçar para Carla não notar. Às vezes ela sentia suas faces ruborizar de tão intenso que era o olhar de Tiago.
Aquele Natal ela aceitou o convite de dona Carmem para ficar com eles. E Raquel aceitou com alegria, pois nos últimos anos ela tinha ficado só em casa. Sua mãe sempre tinha uma festa para ir.
A família toda participou da missa do Galo, e depois foram para casa e comemoram em torno da mesa, onde havia uma variedade de pratos. E só a meia noite que distribuíram os presentes.
Ela tinha comprado presentes para cada um deles. Ela nem estava preocupada em receber algum presente, ela só queria demonstrar gratidão aquela família que era tão acolhedora e amorosa com ela. Tiago ainda estava comprometido com Lizandra. Ele deveria ter ido passar o Natal e o fim do ano com a família dela na fazenda do avô. Mas quando soube que Raquel tinha aceitado o convite de sua mãe, mudou os planos.
Ele estava feliz. O presente que ele escolheu para dar para Raquel foi um livro que ele sabia que ela estava querendo. E ela gostou muito, e entregou para ele uma caixa de madeira entalhada para guardar pequenos objetos. Ele também tinha gostado muito.
Aquela noite foi memorável, ficaram conversando até tarde. Seu Ângelo e dona Carmem foram se deitar e deixaram os jovens bebendo e conversando. Carla acabou dormindo no sofá, mas eles queriam aproveitar o tempo e flertaram muito, até quase o amanhecer, quando trocaram um beijinho de boa noite.
Raquel também aceitou o convite para o fim do ano. Iam todos para a praia. Foi incrível! Era uma praia pequena, com casas simples, mas um lugar sensacional. E a noite depois da meia noite, Tiago convidou as “garotas” para uma caminhada na praia.
Era uma noite de lua cheia, o céu limpo e estrelado. Tiago caminhava ao lado dela, enquanto que Carla corria feito uma criança. E carinhosamente ele pegou sua mão e caminharam como se fossem namorados.
E como Carla estava bem distante, ele ousou beijar sua face e dizer:
-- Que tenhas um ano cheio de coisas novas, de coisas boas e com muitas alegrias.
Ela olhou para ele sorrindo e disse:
-- Obrigada! Desejo o mesmo para ti.
Tiago parou e olhou para ela  e a beijou nos lábios com ternura.
E daquele momento em diante o clima entre eles mudou. Havia um novo entendimento. Não eram namorados, mas também não eram apenas amigos.
Retornaram a cidade.  Raquel e Tiago não se encontraram mais.
Carla tinha voltado para praia  com sua madrinha. Iria ficar pelo menos 30 dias. E neste período Raquel e Tiago ficaram sem se ver. Ele estava com saudades dela, pois adora a sua companhia. Ela por sua vez também estava triste por não poder estar com ele.  Raquel até pensou em aparecer por lá, com a desculpa de fazer uma visita a dona Carmem, mas não teve coragem.
E quando Carla voltou da praia, tinha uma novidade para contar. Ela havia conhecido um cara muito bacana e estavam namorando. Ele se chamava Cristiano. Era estudante de direito e morava ali perto, no mesmo bairro.
Raquel ficou feliz por sua amiga, mas agora ficaria mais difícil para ela ir para casa da Carla,  já que ela estava sempre saindo com o namorado.
Os casais de namorados saiam juntos, convidavam Raquel para ir com eles, mas ela se afastou da turma,  não queria ficar “segurando vela”. E os fins de semana de Raquel era ficar sozinha em casa, lendo ou assistindo TV e sempre trancada em seu quarto.
Sua mãe saia sempre e não a convidava para ir com ela. E ela tinha até um pouco de vergonha do comportamento de sua mãe, que saia para a balada e sempre tinha um novo namorado ou simplesmente trazia para casa um cara para dormir com ela.
Raquel reconhecia que sua mãe era “muito gata”, e que tinha só quarenta e três  anos e gostava de se divertir, mas não concordava com a mãe, sobretudo, no seu jeito de pensar e viver. Evitava brigas, mas essa mania de levar para dentro de casa homens estranhos a irritava profundamente.
Raquel tinha vontade de ir morar sozinha. Mas com que dinheiro? Sabia que seu pai ainda mandava uma boa quantia por mês, mas era sua mãe que administrava. Não faltava nada para ela, até a faculdade ele pagava, mas Raquel só queria viver a sua vida, afastada a mãe.
Os dias passavam e Carla não tinha mais tempo para amiga. As aulas logo reiniciariam, mas Carla havia trocado de turno. Iria cursar a noite, pois assim estaria junto com Cristiano.
Carla e Cristiano estavam muito apaixonados um pelo outro. Era um namoro do jeito que Raquel achava que deveria ser. Eles estavam felizes, não brigavam e passavam todo o tempo que podiam juntos.
Cristiano estava no penultimo semestre, e ele era muito compenetrado e estudioso, e embora eles tivessem se conhecido há pouco tempo, ele estava pensando no futuro deles. Fazia planos de noivado e casamento dentro de no máximo dois anos.
As aulas recomeçaram. Raquel que sempre gostou de estudar, andava desanimada. Sentia falta de Carla, sentia-se muito só. E distante de Carla, e por tabela, também estava distante de Tiago. Raquel estava deprimida e reservada. Algo havia mudado nela.
O tempo corria...
Até que um dia Raquel recebeu uma ligação de Carla, que desesperada falava:
-- Raquel o Tiago sofreu um acidente.
-- O quê? Um acidente?
-- Sim, e muito grave. Eu estou com muito medo...
-- Onde tu estás?
-- No Hospital Público. Trouxeram ele para cá...
-- Estou indo... Espera-me no saguão...
Era um dia de sábado, ainda era cedo, devia ser 9 horas. Raquel vestiu a primeira roupa que encontrou, jogou uma água no rosto, escovou os dentes e saiu apressada. Ela não morava muito longe do hospital.
Em quinze minutos Raquel estava chegando. Entrou no saguão e logo avistou Carla, foi até ela e a abraçou e ambas choraram. Dona Carmem estava por ali e também chorava.
Raquel queria saber o que tinha acontecido e então seu Ângelo, que tinha ido até o local do acidente relatou:
-- Tiago vinha na mão dele, na velocidade permitida e trafegava na via junto a calçada. E de repente uma pessoa se atirou na frente da moto e ele precisou dar uma guinada para não atropelar a mulher e foi pego pelo carro que trafegava na faixa ao lado. Ele voou com o impacto e caiu em cima de um carro a cerca de dez metros dali e foi impulsionado para o chão.
-- Que horror – disse Raquel – e como ele está?
-- Está sendo atendido ainda. Foi para sala de cirurgia. Precisamos esperar.
-- Muito tempo?
-- Não sei...
-- Aqui perto tem uma igreja. Carla vem comigo, vamos rezar e pedir por Tiago.
-- Boa idéia.  Eu e teu pai vamos ficar aqui aguardando.
Quando elas retornaram, encontraram seu Ângelo e dona Carmem mais sossegados. O médico tinha vindo falar com eles e Tiago estava na sala de recuperação. A cirurgia tinha sido perna esquerda.
Mas Tiago permanecia na UTI e já fazia uma semana. Apenas seus pais podiam entrar para vê-lo. Mas Raquel  todos os dias, depois da faculdade, ia para o hospital. Ficava aguardando noticias dele, ou oportunidade de entrar para olhar um pouquinho para ele.
Naquela tarde dona Carmem saiu da UTI, muito preocupada.  Tiago estava com muitas dores, a perna operada não estava bem. Ela estava achando que tinha havido um erro médico no atendimento de emergência, ou talvez ele tivesse algo a mais que não tivesse sido detectado.
Ela estava telefonando para seu marido. Pedindo que viesse ao hospital, pois tinha uma coisa errada. Raquel tentou acalmar dona Carmem, quando veio a idéia de ir falar com seu pai, que era um médico muito conceituado. E disse:
-- Meu pai é ortopedista, e muito afamado. Eu nunca estive com ele, porque ele nunca me procurou. Só me manda dinheiro. Se a senhora permite vou pedir para ele vir examinar o Tiago, posso?
-- Sim minha querida. Mas tu farias isso, ir atrás do pai que nem te conhece?
-- Sim, eu vou. É por uma boa causa. Nós queremos ver o Tiago bem, não é verdade?
-- Sim. Aprecio tua coragem e a estima que tens por meu filho...
-- Eu amo vocês como se fossem a minha família. A senhora sabe como é a minha mãe...
-- Nós também te amamos e a consideramos como da família.
-- Estou indo lá. A senhora vai ficar bem? Ah... Seu Ângelo está chegando. Assim saio mais tranqüila.
Raquel abraçou dona Carmem e deu um beijo em sua face, acenou para seu Ângelo e saiu.
E Raquel pegou seu celular para descobrir  o endereço do consultório dele e o telefone, pois ela sabia muito pouco sobre ele. Pegou um taxi, e foi para Clinica de Ortopedia de seu pai. Era um prédio moderno e muito bonito. Mas isso não a inibiu.
Na portaria não a queriam deixar entrar, pois ela não tinha consulta marcada. Mas isso não fez Raquel recuar. Ela pediu para falar com a secretária e  muito imperativa disse:
-- Eu preciso falar com o Dr. Joaquim. É urgente. Diga a ele que quem está aqui é a Raquel, a filha de Paula. Eu vou ficar esperando a tua resposta aqui em baixo.
Raquel esperou um pouco e logo foi convidada para subir para a sala de espera no consultório. E lá esperou mais um pouco. E foi chamada.
Ela foi conduzida para uma saleta, e não para o consultório. Raquel estava nervosa. Tinha sido tudo tão de repente, que agora não sabia o que dizer para aquele homem, um estranho, mas seu pai.
Ele entrou e parou e olhou para ela. Ele também parecia apreensivo. Então Raquel tomou a iniciativa de falar:
-- Oi... Eu estou aqui...
-- Tu és igual a tua avó. Não te parece nem um pouco com Paula.. Mas  és igual a minha mãe. Os mesmos olhos...  Me dá um abraço...
Raquel não se mexeu. Não esperava uma atitude dessas daquele homem, que nunca quis conhecê-la. E falou:
-- Bem, eu estou aqui porque um amigo meu sofreu um acidente de moto, ele foi para emergência e está na UTI,  passou por uma cirurgia na perna, mas continua com muita dor e pouca sensibilidade. Então estou aqui porque sei que tu és muito bom e eu vim te pedir ajuda.
-- Mas onde ele está? Não é em todos os lugares que eu posso atender. Somos credenciados em determinados hospitais. Não é assim... Eu não posso interferir no tratamento de um colega, ainda mais se ele está na UTI.
-- Então está certo. Se não podes... Obrigado e desculpe por tomar teu tempo.
-- Raquel! Minha filha, eu preciso de mais informações. O nome do rapaz, do hospital,  do médico que está cuidando dele. Eu tenho muitos amigos, e talvez eu possa chegar até ele. Eu quero ajudar, porque percebi que esse rapaz é muito importante para ti.
-- Sim, eu gosto muito dele.
-- Vamos combinar para logo mais nos encontrarmos. Tu és minha convidada, vamos jantar juntos, e tu me traz essas informações e todas mais que puderes. Certo?
-- Sim. Obrigada pai.
-- Me passa o numero do teu telefone. Esse é o meu. Aguarda que eu te ligo.
-- Ok. Tchau...
-- Espera... Não saia assim sem me dar um abraço...
E Raquel atendeu ao pedido do pai e o abraçou e ele a apertou em seus braços e depois a afastou e a beijou na testa. Raquel ficou emocionada e percebeu que ele também estava. Ele segura suas mãos. Após alguns minutos ele a liberou e Raquel saiu com o coração aos pulos, suas mãos tremiam e seus joelhos também.
Depois que saiu do prédio ela se encostou a uma parede e esperou ficar mais firme das pernas para seguir. Tomou um taxi e voltou para o hospital.
Ao chegar encontrou seu Ângelo e dona Carmem parados no corredor próximo a UTI com lágrimas nos olhos. Ela se aproximou e os abraçou e perguntou:
-- O que aconteceu com Tiago?
-- Ele está na mesma, com muitas dores, Vão induzir o coma... – falou seu Ângelo.
Então Raquel relatou para eles a conversa que tinha tido com seu pai. E pediu para eles todas as informações que tinham para passar para o pai. Foi neste momento que Raquel pensou:
-- Ele me convidou para jantar e é para eu levar todas as informações para ele. Mas se vocês conversassem diretamente com ele? Que acham de ir também?
-- Não. – disse dona Carmem—Hoje tu levas as informações que ele pediu. E pergunta se ele deseja conversar conosco.
-- Sim. Vou perguntar para ele. Mas eu acho que ele vai querer passar o Tiago para a Clínica dele.
-- Se for para o bem do meu filho, a gente dá um jeito – disse dona Carmem.
-- Obrigado Raquel – disse seu Ângelo – Tu és um anjo na vida de meu filho.
Por volta das 20h o telefone de Raquel tocou, era seu pai.
Joaquim a levou em uma cantina italiana. Era um restaurante pequeno, acolhedor e com uma massa magnífica. Comeram e depois conversaram. Raquel passou todas as informações que tinha sobre  Tiago.
Seu pai  anotou e depois perguntou sobre os recursos da família. E Raquel disse que eles tinham plano de saúde e que Ângelo era comerciante, tinha uma loja de motos. Que moravam em uma casa muito boa, que era propriedade deles.
Joaquim não fez mais perguntas, apenas marcou para que no dia seguinte eles fossem conversar com ele às 10h, na Clinica. Ele estaria esperando por eles no  consultório.
Então se voltou para a filha e fez muitas perguntas. Raquel estava muito reservada, e respondia com monossílabos. Até que ele disse:
-- Eu sempre me preocupei contigo. Eu já era casado quando conheci tua mãe, que era muito bonita e atraente. Eu era muito jovem e  fui fraco e não resisti aos encantos de Paula. E  ficamos algumas vezes juntos. Então ela engravidou, e eu me assustei. Eu já tinha dois filhos pequenos e amava minha esposa e tinha medo de perdê-la.
-- Entendo... – comentou Raquel.
-- Tua mãe era muito namoradeira e deixava os homens loucos por ela. Não foi só comigo que ela andou. Ela não servia para casar. Desculpe-me, mas essa é a verdade.
-- Eu sei, até hoje ela é assim. Eu não gosto do jeito como ela vive. Ela ainda é muito bonita, gosta de ir para a balada e sempre volta acompanhada. E eu não gosto disso. Fico trancada em meu quarto. Ah... Um dia saio de lá.
-- E esses caras te molestam?
-- Não. Fico trancada. E quando posso durmo na casa de minha amiga Carla, que é irmã de Tiago. Como tu tinhas certeza de que eu era tua filha?
-- Não tinha. Mas o fato é que quando ela engravidou, resolveu ficar sossegada, e eu fui o ultimo que esteve com ela, então...
-- E fez DNA?
-- Não. Resolvi assumir o teu sustento. Por que se eu não fizesse isso, não sei como teria sido a tua vida.
-- Obrigada. É por isso que nunca quis me conhecer?
-- Não! Foi Paula que nunca deixou. Até propus para Paula deixar para mim a tua criação. Eu tinha falado com Olivia, minha esposa, e ela tinha aceitado.
-- Ela que não quis?
-- Exatamente! E o dinheiro que ela recebia? Ela não queria perder.  Tu disseste uma coisa que me deixou preocupado, que tens vontade de sair de perto de tua mãe? É isso?
-- Sim. Eu tenho vergonha do modo de vida dela.
-- Acredito. Hoje eu tive a certeza de que tu és mesmo minha filha. Pois tu és igual a minha mãe, até no jeito de falar. E és muito diferente de Paula. Se tu aceitas, eu tenho um apartamento de um quarto, mobiliado que é de aluguel. E ele está desocupado. Se quiseres podes morar lá, e eu vou falar com meu advogado para passar diretamente para ti o cheque de mando todos os meses.
-- Eu quero. Obrigada. Poderemos nos ver de vez em quando? Sempre sonhei em encontrar com meu pai.
-- Sim querida. Hoje eu sou viúvo. Meus filhos estão estudando na Inglaterra e vivo sozinho. Será uma alegria sair contigo. Vou te levar para conhecer tua avó. Ela sabe de tua existência. Não sei viver em meio a mentiras. Aliás,  como já disse, minha família sempre soube, e teus irmãos sempre tiveram o desejo de te conhecer.
Conversaram mais um pouco e depois ele a deixou em casa.
Naquela noite Raquel não conseguiu dormir. Seus pensamentos giravam, seu coração se acelerava. E lembrava-se do príncipe que chegava para salvar a princesa. Ela estava muito contente. No outro dia bem cedo, ela ligou para dona Carmem, avisando do encontro de que deveria ter com Dr. Joaquim.
Raquel foi para faculdade e depois foi ao hospital como de costume. Ao chegar ela soube que Tiago estava sendo removido para a Clínica do D. Joaquim. Então foi para casa.
Naquela tarde sua mãe estava de folga. E Raquel aproveitou e contou para sua mãe que iria morar sozinha. Que tinha conhecido seu pai. E que Tiago iria ser tratado por seu pai. Ela estava cheia de esperanças.
Paula não disse nada. Apenas escutou o que sua filha tinha a dizer. Ela sabia que Raquel era o oposto dela. Muitas vezes discutiram por causa disso. E pensava que era melhor a filha buscar seu próprio caminho. Não ia interferir. Não queria brigar.

Tiago foi  operado novamente, e talvez ele ficasse com alguma seqüela. Ainda era muito cedo para prever as conseqüências. Mas ele estava bem. As dores tinham passado e ele estava em franca recuperação.
Raquel saiu da casa de sua mãe, e estava muito alegre em seu apartamento, que era bem perto da casa de Carla, na mesma rua a três quarteirões de distancia.
Tiago foi para o quarto, e Raquel passava as tardes com ele. Conversando, contando fatos, dizendo bobagens, mesmo preocupada com ele, Raquel conseguia disfarçar e ser divertida. Os pais de Tiago percebiam o bem que aquela moça estava fazendo filho. E o Dr. Joaquim todos os dias visitava o jovem Tiago.
E quando Tiago recebeu alta do hospital,  e foi para casa, Raquel praticamente se mudou para a casa de sua amiga. E ficava com Tiago o tempo todo. Carla parava pouco em casa. Os fins de semana ela ia para a casa dos pais de Cristiano, que moravam num sitio a 100 km da capital.
Naquele domingo os pais de Tiago estavam fazendo um churrasco em comemoração a recuperação do filho. E tinha um convidado especial, além de alguns amigos do filho.
Raquel não tinha idéia  quem seria o convidado especial, e quando seu pai chegou ela o abraçou muito contente. E foi então que descobriu o seu pai não tinha cobrado por seu serviço. O pagamento foi relativo apenas ao material usado, que foi coberto pelo plano de saúde.
Raquel ficou orgulhosa de seu pai. Ele era um homem de bom coração, ajudava quem necessitava sem pensar em retribuição financeira. Ele era muito rico e sua clinica muito bem conceituada.
O tempo passou e Tiago estava em uma cadeira de rodas. Fazia fisioterapia para recuperar alguns movimentos, mas tinha ficado com uma perna mais curta do que a outra como conseqüência da quebradura que teve no tornozelo. E depois teria que usar um apoio para se locomover.
E isso o deixou arrasado.

Ele amava muita a Raquel.  Ela era uma garota linda e sincera. E nos momentos mais difíceis ela tinha ficado  ali junto dele, segurava sua mão, acariciava seus cabelos e sempre o olhava com ternura. Sempre com uma palavra de ânimo e esperança.
Não era com Lizandra que jurava amor eterno e na primeira semana depois do acidente sumiu. E ele que tinha  continuado com o tal namoro por “pena” dela.
Embora Tiago estivesse bem, apenas precisando de apoio para caminhar, Raquel continuava a visitá-lo e ficando com ele nos sábados à noite e aos domingos.
Ela estava sempre muito perto dele e demonstrava abertamente a paixão que sentia por ele. E ele queria resistir aos seus encantos, mas não conseguia. E em uma noite enquanto eles  assistiam um filme ele se aproximou mais dela, tomou sua mão e isso fez ela olhar para ele.
Então ele se achegou bem a ela, a olhou nos olhos e seus lábios se tocaram e ele a beijou com ternura, e descobriu o gosto daquele beijo, e sem poder resistir, ele aprofundou o beijo, forçando ela abrir a boca para  invadi-la e absorver todo  o sabor daquela boca provocante. Afastou-se um pouco, olhou para aquele lindo rosto e sussurrou palavras de amor. Retomou o beijo e se perdeu de tanto amor.
Raquel se entregou ao beijo e aos carinhos de Tiago. Seu corpo tremia e sua pulsação estava a mil. Isso era amor... Nunca tinha imaginado que um beijo pudesse causar tanta emoção, tanta loucura. E procurou desesperadamente retribuir o  beijo. Também disse coisas para ele, coisas que estavam guardadas as sete chaves em seu coração.
Era tanta emoção que ela chorou. Quando Tiago percebeu que ela estava chorando ficou assustado. Ele tinha sido rude para com ela. Sabia que ela nunca tivera um namorado e que tinha problema em relação ao sexo masculino. Ele tinha sido imprudente.
-- Tu estás chorando... Desculpe, eu fui muito grosseiro contigo...
-- Não! Não é isso. Eu que sou uma boba... Eu gostei do teu beijo... Fez uma revolução dentro de mim.
Tiago sorriu e a abraçou. E continuaram a ver o filme. Mas Raquel não prestou mais atenção ao filme. Olhava para Tiago e que também olhava para ela.  Queria ser beijada outra vez e o provocou e entre eles  rolou muitos beijos e carícias um pouco mais ousadas.
Estava chovendo. Ela tinha que ir embora. Era quase meia noite. Raquel se despediu de foi para seu apartamento.
Em sua cama, Tiago não conseguia dormir e pensava em Raquel... No ardor daquele beijo... E como ela era perfeita, tinha um corpo lindo e era doce e meiga, carinhosa e respondia com sinceridade aos seus avanços. Nossa! Ele quase tinha avançado o “sinal”. Isso não poderia mais acontecer. Mas estar tão perto dela, sentir seu perfume e ter que resistir, era demais. Ele estava louco por ela. Quer dizer, sempre foi... Sua mãe já o tinha alertado e ele nem tinha se dado conta que Raquel era o amor de sua vida.
O que ele faria?
Se estava tão evidente que ele a amava...
Não podia deixar ir adiante. Raquel merecia um cara perfeito, não um aleijado como ele tinha ficado... Ele seria um estorvo na vida dela. Teria que apagar as evidências, desfazer os rastros e libertar Raquel para ela ser feliz.
Raquel chegou ao seu apartamento, tomou um banho quente para se livrar do frio úmido. Fez um chá e sentou no sofá pensando no que tinha acontecido entre eles.  E o telefone tocou, era Tiago perguntando se estava tudo bem com ela. Ele sempre foi assim em relação a ela, telefonava preocupado em saber se estava tudo bem. Ah... Ele era um amor...
E  Raquel continuou pensando, lembrando o que tinham dito enquanto se beijavam e se acariciavam... Tiago tinha dito “eu te amo”, ela tinha escutado perfeitamente, e ela também declarou a ele o seu amor. Ele era tão carinhoso, tão gentil e aquele beijo a tinha enlouquecido. Agora entendia porque as “coisas pegavam fogo” no namoro. O que tinha sido aquilo!
Se ele não tivesse parado ela teria se entregado para ele, ali mesmo na sala... E agora! Será que estavam namorando? Não tinha nem idéia... E não ia perguntar para ninguém. O que tinha acontecido era segredo deles. Dizia respeito apenas a eles dois.
Bem, depois disso,  ela não iria passar o domingo lá. Os pais de Tiago não estariam em casa, eles iam ao aniversário de quarenta anos de casado de um casal amigo. Seria um almoço no clube.
Era madrugada quando Raquel foi para cama. Dormiu e acordou tarde no domingo. Estava chovendo e muito frio. Levantou, tomou café e ligou seu computador. Navegou pela internet, mas não prestou atenção em nada que viu. Seu pensamento estava em Tiago.
Será que ele iria ligar?
Mas quem ligou foi dona Carmem:
-- Oi Raquel. Tudo bem?
-- Oi, tudo certo...
-- Que horas pretendes vir para cá. O Ângelo vai te pegar.
-- Bah... Não sei acordei tarde... Ainda estou de pijama...
-- Tu sabes que temos uma festa para ir, e eu estou preocupada com o Tiago. Ele não acordou muito bem, e eu ficaria mais tranqüila se tu estivesses aqui com ele.
-- O que ele tem?
-- Ele diz que não tem nada, mas está muito estranho... Está abatido, com os olhos fundos... Bem “pra baixo”...
-- Certo, Eu me visto rápido, em quinze minutos estou pronta... Não precisa vir me pegar. Não está mais chovendo, eu vou a pé.
-- Obrigada.  Nós já estamos saindo, queremos assistir a missa com a renovação dos votos do casal. Tem uma lasanha pronta. Só precisa aquecer...
-- Ok. Tchau...
Quando Raquel olhou para Tiago, ele entendeu a preocupação de sua mãe. Ele realmente estava muito abatido, estava distante e muito calado. E logo que ela chegou, ele pediu licença e foi para seu quarto com desculpa que sua perna estava doendo. Iria ficar na cama com a perna em repouso e aquecida pelas cobertas. Estava muito frio.
Raquel não disse nada, apenas ficou olhando ele se afastar.
Caramba! Nem um sorriso ele tinha dado para ela, apenas resmungou um bom dia. E tão pouco olhou para ela... E agora? O que ela deveria fazer? Ficar na sala assistindo TV, ou ir lá, no quarto tomar satisfação dele?
Resolveu ficar quieta na sala. Talvez ele estivesse mesmo com dor e essa reação dele não tivesse nada a ver com ela.
Aqueceu a lasanha, arrumou a mesa e foi chamá-lo:
-- A tua mãe deixou uma lasanha. Está aquecida... Queres almoçar aqui?
-- Estou sem fome...
-- Ah não! Isso está demais. Como não vai comer. Pelo menos um pouco, eu te trago aqui. Assim não pega frio na tua perna.
-- Obrigado, mas não precisa...
-- Já volto.
Raquel arrumou  o prato dele em uma bandeja própria para cama e levou para ele. Ajeitou junto dele para que ele pudesse comer confortavelmente. Sentou na beira da cama e ficou olhando para ele.
Ele comeu um pouco e disse que ela podia levar o resto. Ele precisava se levantar para ir ao banheiro, e ela o ajudou e com todo cuidado alcançou a muleta para ele.
Ela removeu a bandeja e a levou para a cozinha. Escutou o movimento dele no banheiro. Parecia que algo tinha caído no chão. Ele até que podia se abaixar para pegar, mas com a perna doendo seria difícil.
Então Raquel bateu de leve na porta e perguntou:
-- Está tudo bem? Precisa de ajuda?
-- Não! – gritou ele..
Raquel saiu dali. Estava assustada. Ele que sempre era tão gentil... Agora estava sendo tão mal educado! Nossa... Que coisa complicada...
Ela ficou na cozinha, comeu muito pouco, também. Arrumou tudo e foi lá espiar no quarto dele. Foi pé por pé, não queria fazer barulho, talvez ele estivesse dormindo.
E o que ela viu?
Raquel viu o seu amado, recostado na cama, com os olhos fechados e o rosto banhado em lágrimas. Era um choro silencioso.
Afastou-se. Ele não podia nem sonhar que ela o tinha visto assim, tão vulnerável, tão derrotado.
Foi para a sala, pegou um livro na estante e tentou ler. Deixou passar um tempo, e ela voltou ao quarto para saber se ele precisava de alguma coisa. E o encontrou mais calmo, com um olhar duro. Ofereceu para ele um café. Voltou a cozinha enquanto o café passava ela serviu um pedaço de bolo para ele. Ela levou. Ele aceitou, comeu  e disse:
-- Senta. Nós precisamos conversar.
-- Sobre?
-- Sobre ontem. O que houve entre nós, não podia ter acontecido. Eu me aproveitei de tua ingenuidade. Peço desculpas. Não vai mais acontecer....
-- Mas...
-- Tu não podes ter acreditado nas coisas que falei... Foi só um momento de envolvimento... Só isso. Acabei dizendo coisas que não sinto.
Enquanto falava Tiago não olhava para ela. Estava com os olhos fixos na parede. Não fez nenhum gesto, nada! Estava um gelo...
 Ela estava quieta, feito uma múmia e também não olhava para ele, só escutava. Quando ele terminou de falar, ela se levantou e saiu do quarto. Foi para a cozinha, lavou a louça, deixou no escorredor, pegou suas coisas e foi embora.
Ia pela rua como se estivesse em transe. Com o coração aos pedaços ela só queria chegar a seu apartamento rapidamente. Entrou, fechou a porta e explodiu num choro desesperado. Sua cabeça parecia que ia estourar... Tomou um comprimido, desligou o telefone e se deitou.
E dormiu... Muito...
Na segunda feira, Carla ligou para Raquel, queria levar para ela algumas laranjas de céu que tinha trazido do sitio dos pais de Cristiano. Mas o telefone estava desligado. Ela estranhou.
Conversou com seu irmão e o achou muito quieto, sem disposição para falar. Então se preocupou com ele e perguntou:
-- O que há contigo? Tu estás muito esquisito. Está com dor?
-- Não, eu não tenho nada, só não estou para conversa fiada...
-- Credo! E a Raquel?
-- O que tem ela?
-- Como estão as coisas entre vocês?
-- Não sei do que tu estás falando...
-- Ora, meu irmão vocês são apaixonados um pelo outro...
-- Apaixonados? De onde veio essa idéia?
-- Ora, é evidente. O jeito como vocês se olham... Escuta, tu estás zoando de mim?
-- Não. Estou falando sério.
-- Sabe que eu não consegui falar com a Raquel... Eu estou achando estranho, ela nunca desliga o telefone... Será que aconteceu alguma coisa com ela?
Tiago ficou lívido e disse:
-- O que poderia ter acontecido?
-- Não sei...  É um pressentimento... Bobagem minha.
Carla saiu da sala, foi ajudar a sua mãe na cozinha. Mas Tiago ficou pensando, muito preocupado, pois ele sabia o que tinha dito para ela. E é claro que havia evidências que os dois se gostavam muito. Mas ele precisava negar e disfarçar a sua tristeza.
Era quarta feira, quando o pai de Raquel ligou para Tiago:
-- Olá Tiago! Como está?
-- Alô!. Como vai Dr. Joaquim. O que manda?
-- Eu quero saber de Raquel. Estou tentando falar com ela desde segunda feira, o telefone sempre desligado. Pensei que ela pudesse estar ai...
-- Não! Ela esteve aqui no domingo.
-- Então tem algo errado. Eu vou manda abrir a porta do apartamento dela. Eu me preocupo dela ficar sozinha. Obrigado.
-- Não me deixe sem informação...
-- Sim.
Bateu o desespero em Tiago. Se ela tivesse doente, ou sido assaltada... No domingo ele não tinha checado se ela tinha chegado bem em casa. Ah... Senhor! O que eu fiz?
Depois de algum tempo o telefone tocou, era Dr. Joaquim informando que encontrou Raquel em um estado de forte depressão. Ele a estava levando para morar com ele. Ela precisava de cuidados.
A depressão que acometeu Raquel, caiu como uma bomba na casa de Tiago. Carla não se conformava, conhecia bem sua amiga, e para ela ter ficado assim, devia ter sofrido uma forte decepção. Voltou-se para o irmão:
-- O que aconteceu entre vocês?
-- Por que perguntas?
-- Outro dia nós falamos sobre como  vocês tentam disfarçar e não conseguem...  Vocês se gostam e ficam  negando... Ela se decepcionou contigo, tenho certeza...
-- Comigo?
-- Desde quando tu ficaste idiota, foi com a batida? Eu conheço muito bem a Raquel, ela é muito sensível, e tu sabes toda a situação de vida dela. A mãe dela é uma vagabunda, o pai  ela só conheceu recentemente. Ela não acredita nos homens, e tu eras a única exceção, o único que ela confiava em todo o planeta. E tu, com certeza,  deves ter dito ou feito alguma coisa que a levou a essa tristeza profunda. Confessa... Eu sei que aconteceu algo...
Tiago não respondeu para sua irmã. Saiu dali e foi para o seu quarto. Mas Carla foi atrás, insistindo:
-- Se eu souber talvez eu possa ajudá-la. Desembucha...
-- Eu só falei que não vai rolar nada entre nós.
-- Só isso?
-- Carla me ouve. Raquel é linda, inteligente e merece um cara legal. Eu desejo tudo de bom para ela.
-- Mas por quê? Explica-me...
-- Se a gente já estivesse junto antes do acidente, tudo seria diferente. Mas agora eu sou um aleijado, preciso de muleta para andar... E eu gosto dela, não posso querer que ela se prenda a mim, por isso eu falei, tirei  todas as esperanças dela, para ela ficar livre e ter a oportunidade de encontrar alguém melhor do que eu.
-- Tiago, definitivamente, a batida fez mal para a tua inteligência. Dá a ela a chance de decidir se ela quer ficar contigo. É diferente. Tu fizeste tudo errado. Eu vou lá ver se consigo consertar essa tua burrada.
Carla saiu, e Tiago ficou cabisbaixo pensando. Raquel tinha se dedicado a ele, desde o acidente ela tinha agido sempre pensando no melhor para ele. Ela o amava com sinceridade. Lizandra tinha sumido, mas Raquel, ao contrário, se fez presente. Sua irmã tinha razão, ele era mesmo um idiota. Pegou o telefone e ligou para a casa do Dr. Joaquim, e pediu para falar com Raquel, e a resposta que obteve foi que Raquel estava hospitalizada e ninguém  estava autorizada a dar mais informações. Ele agradeceu e desligou o telefone.
Com essa história de ela está internada era sinal que ela tinha tentado contra a própria vida. E a “ficha caiu”. Ele tinha sido o causador de tudo isso, era mesmo um imbecil. Quem não merecia viver era ele. E Tiago chorou...
Os dias passaram...
Tinham passados dois meses e Raquel agora morava com seu pai. Ele a tratava com carinho e a mimava. Apesar da dor que permanecia em seu intimo, Raquel estava bem. Seu pai  era uma pessoa incrível, agora que o conhecia melhor, gostava muito de estar perto dele. Seus irmãos tinham vindo conhecê-la. Eles eram bem legais.
Mas Tiago continuava em seu pensamento. Ela tinha falado algumas vezes com Carla, mas era mais saudável elas permanecerem um pouco distantes. Às vezes em que se encontravam,  nenhuma delas falou sobre Tiago.
Raquel trancou sua matricula na faculdade, naquele semestre. Tinha outros planos. Iria viajar com seu pai. Ela estava feliz e ansiosa. Era uma experiência nova. A presença de seu pai estava se tornando muito forte em sua vida, e isso era bom, pois  a fazia  rever os seus conceitos acerca do sexo oposto.
Fazia oito meses que Tiago estava afastado de Raquel. Ele estava bem, sentia muita falta dela e não procurou compensar a sua ausência na companhia de outra namorada. Ele queria permanecer só.
Tinha procurado a assistência de um psicólogo, que o ajudou muito. E  agora ele estava aceitando bem as conseqüências do acidente. O seu tornozelo que foi esfacelado e  recomposto com metal, não tinha mais o movimento e nem a firmeza de antes, além de a perna ter ficado um pouco mais curta. Isso causava algum desconforto e a necessidade de usar uma muleta.
Tiago estava aos poucos voltando a rotina. Retomou os estudos, e no fim daquele semestre estaria se formando. E retornou ao trabalho. Estava mais animado, mas de sua mãe ele não conseguia esconder a tristeza que carregava no olhar.
Dona Carmem desconfiava que tivesse acontecido alguma coisa mais seria entre eles, pois as evidências levavam ela acreditar nisso. Embora negasse, Tiago era apaixonado por Raquel, que por sua vez, também deixava muito claro que o amava com profundidade.
A fuga de Raquel naquele domingo, e a amargura de seu filho eram argumentos para ela pensar que tinha havido um envolvimento físico entre eles. Só não sabia até que ponto eles tinham chegado. Tinha muita vontade de perguntar, mas era  avançar na intimidade deles.
Carla e Cristiano tinham noivado, e comemoraram em família. Os preparativos para o casamento era o assunto. Carla planejava convidar sua querida amiga Raquel para ser sua madrinha. Mas tinha receios.
Mas resolveu arriscar. Sabia que Raquel tinha retornado de viagem. Ela tinha ficado três meses na Europa. E acompanhada de seus irmãos viajou para vários lugares.
Carla telefonou e foi visitar a amiga, que a recebeu com muita alegria, como nos velhos tempos. Carla observou que Raquel estava muito diferente, mais segura de si, muito bonita e definitivamente muito divertida.
Raquel com um sorriso imenso aceitou ser madrinha de casamento de sua querida amiga Carla. Naquele momento Carla avisou que seu par seria o Caio, irmão de Cristiano.
Os dias passavam e inúmeras vezes Raquel e Carla saíram juntas para escolher peças para o enxoval, fazer a lista de presentes, verem as novidades... E foi numa dessas visitas ao shopping que Raquel contou para Carla que iria acompanhada no casamento, pois ela estava saindo com um jovem médico, assistente de seu pai. Ele se chamava Daniel.
Naquele dia ao chegar em casa, Carla contou para sua mãe a novidade. E ela tinha que prevenir  o seu irmão, para que no dia do casamento ele pudesse agir com naturalidade.
Tiago escutou o que sua irmã falou, e não comentou nada, apenas agradeceu. Mas naquela noite ele não conciliou o sono. Não saíam de sua cabeça as palavras de sua irmã: “ a Raquel virá acompanhada ao meu casamento, Ela está saindo com um médico assistente do pai dela.” Essas palavras foram escritas a fogo em seu coração.
Ele também seria padrinho, e ficaria de frente para ela, no presbitério, durante a cerimônia de casamento. Ele estaria acompanhado pela prima de Cristiano. Que situação!
O dia do casamento estava próximo, e Raquel decidiu que iria arrasar. Escolheu para ela usar no casamento um vestido lindíssimo, na cor verde  esmeralda, que combinava com seus olhos, num modelo que realçava as curvas de seu corpo.
Dois dias antes do casamento Raquel e Carla foram à modista, para a ultima prova do vestido de Carla. Ela tinha ficado magnífica, naquele vestido de noiva. Era um modelo simples, num tecido lindo e tinha ficado realmente muito bem em Carla. Era uma noiva romântica, bem de acordo com o seu jeito de ser. Raquel até se emocionou quando viu sua amiga tão linda e tão feliz.
O dia do casamento chegou e Raquel estava inquieta. Sabia que encontraria com Tiago, era inevitável, mas não conseguia prever qual seria a sua reação. Então resolveu tomar um banho de imersão relaxante. Colocou sais em sua banheira e imergiu seu corpo naquela água morna. Fechou os olhos e sonhou...
Vestiu-se com cuidado, e ao final se olhou no espelho e até se assustou de sua imagem. Ela estava muito elegante e sexy. Seu vestido era “tomara que caia” e ressaltava sobremaneira os seus seios. Ela se achou um pouco decotada demais, mas a vendedora a tinha incitado para comprar o vestido, pois era o vestido ideal para mostrar todo o “conteúdo que ela tinha.”
Raquel olhou-se mais uma vez no espelho e sorriu. Ela iria abafar... Pegou a echarpe  do mesmo tecido do vestido e jogou sobre os ombros. Não deveria entrar na igreja com esse decote.
Daniel conversava com Dr. Joaquim enquanto esperava por Raquel. Mas quando ele a viu entrar na sala  sua expressão mudou e foi ao encontro daquela esplendida mulher. Dr. Joaquim virou-se para ver a filha, e ficou muito orgulhoso de ser pai de uma moça tão linda e elegante.
Daniel e Raquel entraram no átrio da igreja. E ela logo viu Tiago, que estava encostado em uma coluna. Seu corpo reagiu como se tivesse recebido uma descarga elétrica, todas as fibras vibraram, e quando seus olhos se encontraram foi um turbilhão de emoções que tomou conta de Raquel. Ela tremia.
Daniel percebeu e perguntou
-- Tudo bem contigo?
-- Sim... Respondeu Raquel num sussurro.
Dona Carmem se aproximou dela, a olhou com admiração e sorriu, pegou suas mãos, que estavam geladas, a abraçou e disse ao seu ouvido:
-- Que saudade... Tu estás linda demais! Vai deixar meu filho sem fôlego.           
Raquel corou e olhou para Tiago que não tirava os olhos dela. E para deixar ainda pior a situação ele se aproximou também, para cumprimentá-la.
Tiago a abraçou e beijou sua face e murmurou:
-- Isso é jogo sujo... Estás muito sedutora.
Ela olhou para ele com os olhos arregalados. Riu de nervosa e Tiago percebeu que ela estava muito apreensiva. E continuou:
-- Calma. Vai ficar tudo bem... E afastou-se dela.
Daniel estava ao lado dela, e ocupado com dona Carmen que estava conversando com ele. Raquel respirou fundo e foi para perto de Daniel. Logo  os pares foram organizados e o cortejo dos padrinhos entrou pelo corredor principal da igreja.
Daniel esperou e então procurou um lugar para ele, assistir o casamento.
A noiva surgiu no fundo da igreja, e de onde estava Raquel pode ver como sua amiga estava radiante de felicidade. À medida que Carla avançava pelo corredor, seus olhos se tornavam mais iluminados. Ela estava esplendida.
Durante a cerimônia Raquel tentava não olhar para Tiago que estava bem a sua frente do outro lado do presbitério. Mas parecia que havia um imã que puxava seus olhos para ele, que se mantinha com os olhos presos nela. Olhar nos olhos de Tiago a deixava sem ar. Aliás, estava respirando com dificuldade desde que entrou no templo.
Com certeza, todos os presentes, naquele templo, incluindo Daniel, tinham percebido que Tiago e Raquel estavam com os olhos fixos um no outro. Isso passava pela cabeça de Raquel, que estava com as pernas bambas e estava com medo de desabar em plena cerimônia de casamento de sua amiga.
Dona Carmem a olhava também. Mas com um olhar atencioso, que emitia uma mensagem de força.

Daniel e Raquel chegaram ao salão onde seria a recepção, e já estava sendo servido  coquetéis e salgadinhos. Os noivos estavam sendo aguardados. Raquel encontrou com Gabriela e Leandro, que por incrível que fosse, estavam casados e muito felizes. A conversa estava bem animada, quando Daniel recebeu um chamado do hospital. Havia uma emergência, ele precisava ir. Daniel saiu discretamente.
Tiago de longe viu tudo. E esperou um pouco para se reunir aquele grupo que conversava animadamente. Ele chegou e foi logo puxando assunto com seu amigo Leandro, deixando elas em uma conversa paralela. Só depois quando Gabriela fez uma pergunta a ele, que a conversa ficou generalizada.
Os noivos chegaram.
E todos foram convidados a se dirigirem para o salão de jantar. Os lugares não eram marcados e Tiago perguntou para Raquel:
-- O teu namorado onde está?
-- Ele foi chamado ao hospital, uma emergência... E ele não é meu namorado, apenas um bom amigo.
-- Hum... Então estás sozinha. Posso te fazer companhia?
-- Sim, como nos velhos tempos...
-- Como nos velhos tempos, retrucou Tiago.
O jantar foi servido a francesa e a conversa na mesa foi divertida. Leandro continuava  do mesmo jeito, sempre fazendo os outros rir. E então a musica deu inicio as danças.
Caio, convidou Raquel para dançar.
Tiago ficou pensando enquanto olhava Raquel dançar. Ela estava irresistível, aquele vestido realçava sua beleza, e como ela dançava com leveza, se movia com elegância e sorria e falava com muita desenvoltura. Era a mulher mais bonita da festa, a mais sedutora do planeta. Céus! Ele estava louco por ela.
 Quando ela entrou naquela igreja ele quase foi ao chão. Suas pernas falsearam, seu corpo inteiro foi tomado por um curto circuito, que fez todas as células reagirem. Ela estava estonteante, linda demais.
Ver Raquel  ao lado de outro homem o deixou cheio de ciúmes. Ele a queria, ela era a mulher de sua vida. Precisava agir...
E enquanto sua irmã se casava, eles se olharam com muita intensidade. Ela estava visivelmente perturbada. Assim como ele. Quando ele a tinha cumprimentado,  ela estava com as mãos geladas e suadas. Ela tinha se emocionado...  Talvez ele ainda tivesse uma chance...
Agora ela dançava com Caio, e mais uma vez o ciúme tomou conta dele. Já tinham dançado três musicas, será que ela não iria pedir para parar? E ele nem podia dançar com ela.
Mas,  Raquel parou de dançar e voltou para mesa.
Tiago esperou um pouco e a convidou para dar uma volta pelo jardim, que estava lindamente decorado. Ela aceitou. Ele levantou-se sorrindo e a conduziu para o jardim.
O jardim estava muito bonito, todo decorado com lanternas coloridas, deixando na penumbra alguns recantos. E foi num desses recantos que eles sentaram.
Subitamente eles ficaram tímidos, apenas se olharam. E foi Raquel que rompeu o silêncio e perguntou:
-- Como tu estás? A perna ainda dói?
-- Eu estou bem, já me acostumei com a situação, não tem jeito mesmo... E a perna não incomoda mais, a não ser quando o tempo está para chover...
Raquel também falou de si, de sua viagem com seus irmãos, e que estava no ultimo semestre que em dezembro seria a sua formatura. Ele contou que tinha conseguido se formar em agosto. E que continuava trabalhando com o pai. E que agora não vendiam apenas motos, mas estavam focando mais no automóvel. Que depois do acidente ele só andava de carro. Sua mãe havia lhe pedido para não voltar a andar de moto.
Então Tiago se encheu de coragem e fez a pergunta que estava em sua mente desde que ele a viu, na igreja.
-- Faz tempo que namoras o Daniel?
-- Nós não estamos namorando! Eu já falei isso. Apenas saímos algumas vezes juntos. Ele é um bom amigo.
-- Amigo... – murmurou Tiago, sabendo que o tal “amigo” estava mesmo de olho nela. Estava só  esperando o momento oportuno. Então ele tomou a mão de Raquel e acariciou e disse:
-- Sinto muita falta de ti...
-- Eu também – respondeu Raquel com os olhos marejados. E sua vontade era de se aconchegar a ele, sentir seu cheiro, sua respiração e beijá-lo. Mas, levantou-se e disse que estava na hora de ir embora. Já era tarde.
Tiago se  levantou e disse:
-- Eu te levo. Também vou embora.
-- Eu aceito. Obrigada.
Ele colocou a mão nas costas de Raquel e a conduziu de volta para o salão. Ali as danças estavam muito animadas e  o salão estava repleto.
Tiago estacionou em frente ao prédio em que Raquel morava com seu pai. Era um edifício moderno e de luxo. Ele olhou e admirou o lugar dizendo:
-- Estas morando em um lugar bacana.
-- Sim. Eu nunca imaginei isso na minha vida. Meu maior sonho era sair de perto de minha mãe.
-- É mesmo. E como está a relação entre vocês.
-- Bem. No fundo ela gostou... Ainda mais agora que estou com meu pai. Ela está livre de mim. Vivendo do jeito que gosta.
-- Eu ainda não te agradeci por toda a tua dedicação...
-- Deixa disso. Amigos são para isso.
-- Eu sei.
Então ela se movimentou para descer e Tiago a pegou pelo braço e ela se voltou e ele a beijou. E ela retribuiu.  Olharam-se e ela saiu rapidamente do carro, e entrou correndo no prédio, sem se virar para trás.
Raquel estava agitada. Aquele beijo a tinha deixado assim. Sua cabeça estava girando, seu coração estava em disparada e um sorriso surgiu. Ele ainda gostava dela. As evidências apontavam para isso.
Nossa! Em plena igreja eles se olhavam como se apenas eles dois estivesse ali, como apaixonados! Bah... Todos os  que estavam na igreja deviam ter percebido...
Que vontade de ligar para ele.
E ela ligou.
-- Oi, já chegou em casa?
-- Sim, mas essa não é a minha “fala”?
Raquel riu.
-- É, mas às vezes dá para inverter.
-- Ainda não dormiu?
-- Não consigo... Eu te acordei?
-- Não! Eu estava pensando em ti...
-- Eu também. Gostei muito de te rever, foi uma noite maravilhosa...
-- É foi uma noite maravilhosa, tirando aquela parte em que dançaste com o Caio.
-- Mas eu não podia fazer desfeita. Ele foi tão gentil.
-- Entendo.
E ficaram conversando Mais de hora, como dois adolescentes. E combinaram de ir ao cinema.
Só então Raquel dormiu, e sonhou... Que estava se casando com Tiago.
Tiago também sonhou com Raquel, mas sonhos eróticos.
Domingo durante o dia fez um calor insuportável. O ar estava pesado, abafado, prenúncio de temporal. E o temporal veio muito forte, no meio da tarde. Derrubando árvores, postes e  provocando alagamentos, causando muitos transtornos na cidade.
Raquel ligou para Tiago cancelando o cinema, mas se ele tivesse como chegar até a casa dela, eles podiam comer qualquer coisa  e assistir um  filme. E Tiago aceitou a proposta dela.
Raquel estava sozinha em casa. Seu pai tinha embarcado cedo da manhã, para São Paulo, onde participaria de um congresso. Ficaria uma semana fora.
Raquel gostava de cozinhar e foi para a cozinha preparar uns petiços para eles comerem. Arrumou tudo e foi tomar um banho para se arrumar e esperar por Tiago.
Tiago chegou.
Ela o recebeu com um lindo sorriso. Raquel estava usando um vestido com estampas coloridas, com um babado na bainha e na frente um pouco mais curto. Seus cabelos estavam soltos e ela tinha pintado levemente os lábios com um batom rosa.
Ela estava linda. Estava sedutora...
Ele a beijou de leve na face e disse a ela:
-- Oi. Nossa! Tu estás demais.
 E entrou no apartamento. E ele viu que era um apartamento muito grande e muito bem decorado.  E virando-se para Raquel ele disse:
-- Que lugar bacana...
-- Sim. É o meu lar. Estou muito feliz, meu pai me ama, meus irmãos também. Eu gosto muito de morar aqui, não tanto pela beleza, mas pelo acolhimento.
 Ela o direcionou para a cobertura, onde ficava a sala de TV e ele sentou-se. Raquel foi até a cozinha para buscar o que tinha preparado para eles. E colocou sobre a mesa uma tábua com uma variedade de queijos e pães de queijo e copos de vinho. Raquel escolheu o vinho, na adega climatizada,  e pediu que Tiago abrisse a garrafa para ela. 
Estavam sentados no sofá assistindo o filme,  que era um drama cheio de suspense,  com um enredo bem complicado, quando a campainha soou. Tiago pausou o filme, enquanto Raquel foi atender a porta.  Era Daniel.
-- Olá, nossa como tu estás bonita!
-- Oi, o que houve?
-- Nada, sai do hospital e resolvi passar por aqui para ver como tu estás?
-- Eu estou bem obrigada.
-- Tem alguém ai?
-- Sim, o Tiago e eu estamos vendo um filme.
-- Mesmo! Então vou ficar com vocês.
Raquel foi a frente e Daniel a seguiu até a sala de TV. Os dois homens se cumprimentaram como se fossem entrar no ringue de luta livre. O ambiente ficou tenso. Raquel não sabia como agir.
Ela sentou no sofá e Tiago sentou a seu lado.  Daniel escolheu a poltrona. E exclamou:
-- Bah... Um lanchinho! Eu estou fome. Raquel tu podes ver uma água.
Raquel foi até o frigobar  e alcançou uma garrafa e um copo. E Daniel olhou para a tela que estava no modo pausa e continuou falando:
-- Esse filme eu já vi. É surpreendente o final. Nada daquilo que se espera.
-- Não vai contar, por favor. – disse Raquel com um jeito alterado.
Tiago que estava com a intenção de conversar com Raquel e firmar o namoro entre eles, viu que não haveria oportunidade. A sua vontade era dar um chega para lá no Daniel. Mas não podia, o cara era assistente do pai de Raquel. Ele suspirou e ficou quieto. Mas aproximou-se um pouco de Raquel e pegou a sua e a segurou em seu colo. Raquel olhou para ele e deixou que ele segurasse sua mão.
Daniel viu o gesto de Tiago e não gostou. Ah, ele não ia deixar ser fácil. Então disse:
-- Como está teu o tornozelo?
-- Está bem. – respondeu Tiago.
-- Cara, tu não tem idéia de como estava. Eu assisti a cirurgia. Ainda bem foi Dr. Joaquim que te operou, ele é o melhor. Se mesmo assim tu ficaste com problema de locomoção, se não fosse ele, talvez tivesse que amputar o pé. Tu foste fotografado, em todas as etapas de cirurgia, para material de estudos. Tu sabias disso?
-- Sim, meus pais autorizaram.
Caiu um silêncio.
Raquel nunca tinha visto Daniel assim, desse jeito. Ele sempre tão educado, hoje estava muito inconveniente. Nem o filme eles poderiam terminar de assistir. Ela levantou-se, pediu licença e desceu.
Foi para a cozinha fazer pipoca, já que Daniel tinha terminado com o lanche deles. Ela estava furiosa com Daniel. Claro que ele só queria perturbar. Mas Tiago tinha demonstrado que ele estava na disputa e que não ia deixar fácil para Daniel. E pegar a sua mão foi genial. Uma pequena mostra de que a posse era dele. Bem, isso era o que ele pensava. E ela sorriu ao pensar.
Raquel retornou trazendo dois recipientes com pipocas, um com pipoca doce e outro com pipoca salgada. Entregou o pote com a pipoca salgada para Daniel, e pegou a pipoca doce e sentou junto de Tiago para dividir com ele, pois sabia que, assim como ela, ele também  preferia a pipoca doce.
A conversa entre eles girou para automóveis, deixando ela completamente fora do assunto, e depois Daniel começou a falar de mulheres, visivelmente provocando o Tiago para se manifestar sobre suas preferências. Raquel estava furiosa.
Raquel simplesmente disse que estava com dor de cabeça, e pediu que fossem embora, os dois. Então Daniel levantou-se e disse para Tiago:
-- Vamos, acho que ela está chateada conosco.
Tiago rosnou e não disse nada. E ao despedir-se disse ao ouvido de Raquel:
-- Eu vou dar um giro e volto. Pode me esperar.
Raquel não disse nada. Apenas fechou a porta.  Chegou a rir sozinha. Os dois pareciam dois garotos brigando pelo mesmo doce. No caso por ela. Ela estava lisonjeada.
Meia hora depois, Tiago voltou, e sorrindo a convidou para ver o resto do filme. Sentaram bem juntinhos e Tiago passou seu braço sobre os ombros dela e a puxou para junto dele.
Quando o filme terminou, ele não se mexeu. E a conservou junto dele. E ele disse que precisava  dizer algumas coisas para ela.
E Tiago começou falando que ele tinha buscado a ajuda de um psicólogo, que agora ele estava conformado e de como ele tinha sido estúpido naquele domingo. Que ele tinha se arrependido muito, de ter negado todas as evidências. Mas a verdade era  que ele a amava. E por causa desse amor, foi que ele não se achava mais a altura dela. Uma moça bonita e inteligente, ficar com um cara como ele, que além de tudo, tinha ficado com um defeito, e sem condições de andar sem auxilio de uma muleta.
Raquel apenas escutava, mas lágrimas escorriam por suas faces. Lembrar aquele domingo era muito difícil. Tinha sido a maior decepção de sua vida.
E Tiago continuou.
--Nós tínhamos nos beijado e trocado carícia e algumas ousadas, e foi muito bom... Eu fiquei meio enlouquecido por ti. E sei que tu sentiste algo parecido, pois o teu jeito de retribuir deixou isso muito claro. Mas eu te rejeitei, neguei o meu amor e te decepcionei e te afastei de mim, conscientemente, isso é o pior de tudo. Cada palavra que eu te falava me cortava o coração, mas eu entendia de não devíamos continuar. Até a Carla brigou comigo, me alertando que eu jamais deveria ter agido daquela forma, e ainda salientou que devia ter deixado que a escolha fosse tua. Sei que eu te magoei, mas do fundo do meu ser eu quero te pedir perdão por tudo.
Raquel estava emocionada, todo o seu ser vibrava e seu coração estava acelerado. Ela tinha vontade de se jogar sobre ele e cobri-lo de beijos.
Então Tiago olhou para ela e a pegou pelo queixo e girou sua cabeça para ficar de frente para ele e olhando nos olhos dela perguntou mais uma vez:
-- Raquel, tu me perdoa?
-- Sim. – disse Raquel chorando.
-- Eu te amo, mas vou pedir para que a decisão seja tua.
-- Decisão?
-- Sim, se queres namorar comigo.
Foi nesse momento que o telefone de Raquel tocou. Era sua mãe e ela levantou-se e foi falar com ela.
Tiago ficou ali sentado esperando, seu coração aos pulos, mas cheio de esperanças. Raquel era tão doce, tão honesta e tão transparente. Ele tinha certeza de que ela o amava também.
Mas pelo tom de voz de Raquel, Tiago percebeu que tinha acontecido alguma coisa. E foi ao encontro dela, pensando que o momento deles se foi.
Raquel desligou o telefone com um olhar assustado, e ele perguntou:
-- O que aconteceu?
-- Minha mãe... Não sei! Ela não esta dizendo coisa com coisa, ela chorou e falou e eu não consegui entender. Eu vou até lá.
-- Eu vou contigo.
Quando eles chegaram ao apartamento de Paula a encontraram deitada no chão, despida  e completamente bêbada. Eles a levantaram, e levaram para o chuveiro, tentando fazê-la reagir.
Depois de vesti-la com uma camiseta de dormir, a levaram para cama e eles a deixaram recostada. Raquel foi até a cozinha para fazer um café forte, e encontrou sobre a mesa um exame de laboratório. Pegou o exame, confirmou o nome para ver se era mesmo de sua mãe e então viu que o resultado era positivo, logo pensou em gravidez, mas quando leu o tipo de reação, viu que o resultado era positivo para AIDS.
Raquel começou a chorar.
Depois de algum tempo ela se acalmou e levou o café para a sua mãe, e disse ao ouvido de Tiago:
-- Olha em cima da mesa da cozinha o exame.
Raquel sentou perto da mãe e a faz beber um pouco de café. Tentou conversar com ela, mas Paula estava muito grogue. Ajeitou os travesseiros e a cobriu, deixou que ela dormisse.
Foi para sala onde Tiago a esperava. Ele a abraçou, e Raquel se aninhou naquele abraço. Ela não sabia qual providencia devia tomar. Então falou:
-- Eu sempre soube que algo assim iria acontecer com ela. Com a vida que leva... Sempre foi assim. Eu suportei muitas coisas dela, ela nunca se importou muito comigo. Só queria “festa”, mesmo quando eu ainda era pequena ela me deixava sozinha para ir para a noite.
-- Eu sei... Eu sei... Não te atormenta. Ela fez a sua escolha... E agora veio a cobrança.
-- É... Eu acho que ela não melhorou nada... Será que não devíamos levá-la para o hospital?
-- Vamos chamar a emergência SOS. Eu tenho o numero no meu telefone.
A emergência chegou e os paramédicos decidiram levá-la para o hospital. Talvez não fosse só bebida, ela poderia ter tomado tranqüilizantes. Eles procuraram pelo apartamento, até no lixo olharam, e não encontraram nenhum vestígio.
Paula  ficou internada na UTI.
Raquel voltou para casa e pediu para Tiago ficar com ela, pois não queria ficar sozinha. E ele ficou ao lado dela. Dormiram abraçados no sofá da sala da TV.
Ele acordou cedo, era segunda feira ele teria que ir trabalhar. Mas  antes de levantar ficou olhando ela dormir. Ela era linda... Ela abriu os olhos e sorriu. Espreguiçou-se disse:
-- Bom dia. Obrigado por tudo. Não sei o que eu faria sem ti.
-- Bom dia minha linda...
Raquel foi para a cozinha e fazer  o café. E enquanto eles tomavam o café, quase não falaram e Tiago saiu, ia para casa tomar um banho antes de ir para loja. Ela o levou até a porta:
-- Tenha um abençoado dia. Vem jantar comigo, vou fazer lasanha, sei que tu gostas...
-- Estás me comprando com uma lasanha. Nossa! Eu estou valendo pouco.
-- Não! Ao contrário tu estas valendo muito, pelo menos para mim.
-- O simpático do Daniel vai estar também?
-- Não. Hoje não atendo a porta...
-- Ok. Tchau... Que seja um ótimo dia para ti.
 Tiago a beijou de leve nos lábios, e saiu.
Raquel estava contente por ter Tiago novamente perto dela. Ele a tinha pedido em namoro e ela nem conseguiu responder. Mas logo ela daria o seu sim.
Raquel tomou um banho e  vestiu uma caça jeans e uma camiseta azul clarinho e calçou uma sapatilha e ligou para o hospital para saber noticias de sua mãe. E soube que  ainda não tinham liberado os boletins. Só mais tarde.
Então ligou para seu pai. Contou para ele a situação de sua mãe, e ele disse que entraria em contato com o hospital, pois ficou preocupado. Inclusive alertou a filha sobre a possibilidade dela não superar a situação.
Dr. Joaquim conversou com seu colega e foi informado de que Paula não tinha apenas ingerido grande quantidade de bebida alcoólica, como também tinha feito um coquetel de medicamentos. A situação dela era delicada.
O dia passou e Raquel se distraiu preparando a lasanha, enquanto que a faxineira cuidava da casa. No fim da tarde tomou outro banho e se arrumou para esperar por Tiago.
Ele chegou trazendo uma rosa para ela. E ela ficou muito alegre por ele ter lembrado de que ela gostava de rosas vermelhas.
Jantaram, beberam vinho e depois sentaram para conversar. Ela tinha preparado negrinho que eles comeram de colher.
Tiago olhou o relógio e viu que estava tarde. Levantou-se para ir embora. Então Raquel se colocou de pé e disse enquanto pousava suas mãos nos ombros de Tiago:
-- Eu te devo uma resposta.
-- Resposta? – brincou Tiago.
-- Sim. – provocou ela.
-- Fala. Estou esperando...
-- Falar o que? – riu Raquel.
-- Está me fazendo de bobo... Eu quero a resposta. – disse Tiago.
-- Eu já falei...
Ele a abraçou e beijou, mas eu quero  que me digas mais uma vez. E Raquel atendeu ao pedido dele:
-- Minha resposta é sim. Eu quero ficar contigo, sempre quis. Desde muito tempo...
-- Eu também, sempre te quis. Eu ainda estava com a Lizandra, mas meu coração já era teu. Nós vamos ser felizes, vamos superar todos os percalços do caminho, pois estaremos sempre juntos.
No dia seguinte Paula faleceu.
Só alguns amigos próximos foram se despedir dela.
Raquel não se desesperou com a morte da mãe. Ela amava sua mãe, mas elas nunca tinham sido amigas. Desde tenra idade Raquel desenvolveu um escudo para se proteger de sua mãe. Que a deixava sozinha à noite para sair e se divertir, e nem não se preocupava em saber se ela tinha medo de ficar sozinha, se tinha feito as refeições, se tinha tomado banho e escovado os dentes antes de dormir. Nunca perguntou como ela estava na escola. E algumas vezes tinha tido atitudes de violência para com ela. Raquel não sabia definir o que sentia... Mas com certeza,  a morte de sua mãe,  era uma sensação de alivio.
Fazia duas semanas que estavam namorando e eles queriam ter a sua primeira vez em um lugar especial. E foram para a costa doce, a beira da lagoa dos Patos.
O hotel que eles escolheram para ficar era muito bonito, na beira da lagoa, com uma vasta praia particular. Não era época de alta temporada, e o hotel estava com poucos hospedes.
Eles chegaram e logo saíram para caminhar a beira da lagoa, sentindo o vento no rosto. Eles andavam abraçados e paravam para admirar a paisagem, trocavam beijos e estavam felizes.
E naquela noite, depois de um jantar especial, eles foram para a suíte. Necessitavam de privacidade, pois o desejo os consumia. Precisavam urgentemente se entregar ao amor, e com plenitude.
Depois do amor eles dormiram abraçados, sonharam com a felicidade que invadia suas vidas.
E decidiram casar. Não precisavam namorar... Eles se conheciam o suficiente.
E  depois de um mês, em uma cerimônia muito simples  e intima eles casaram.
Um tempo depois.
Tiago estava muito feliz, carregava nos braços uma princesa, a sua filhinha. Beijou carinhosamente a menininha, que já estava dormindo e a colocou no berço.
Tiago abraçou Raquel e eles ficaram olhando o fruto de amor deles.  E ele chegou a sorrir quando lembrou que ele tinha lutado contra esse amor, tinha se esforçado  para disfarçar as evidências... Mas o amor é mais forte, o amor sempre vence e supera tudo.

                                                        Maria Ronety Canibal
                                                          Fevereiro de 2018.
                                                  

IMAGEM VIA INTERNET 




sábado, 16 de março de 2019

ENFEITIÇADOS


 ENFEITIÇADOS




Era um dia lindo de primavera.  A pequena cidade em que morava a família de Lorenzo estava em festa. Era dia da padroeira.  A praça central de Santinha estava repleta de pessoas que acompanhavam a procissão.
Lorenzo estava ali apenas apreciando, mas de repente, como se tivesse sido tomado por um raio, seu coração disparou ao por olhos em uma moça que passava a sua frente.
Era linda! Tinha um rosto perfeito, olhos verdes e uma boca tentadora. Ela ao passar olhou para ele e esboçou um sorriso. E ele se apaixonou por ela, naquele instante. Uma coisa de louco...
Ele não sabia quem era ela, nem seu nome, onde morava... Nada! E como descobrir? Ele nem estava morando mais na cidade há cinco anos. Tinha ido para a Atalaia do Mar por causa do curso de medicina, e agora já estava fazendo residência no hospital universitário.
Perguntar para o seu primo Juliano??? Com que referencia? Não tinha como saber. Só o destino... Mas depois da procissão Lorenzo vagou pela praça e imediações com esperança de encontrar a moça. Mas não encontrou. Já era tarde quando foi para casa. No outro dia cedo voltaria para sua rotina.
Lorenzo foi com o sorriso  dela gravado em sua mente. Ele realmente estava enfeitiçado. A moça não saia do seu pensamento. Até em fotografias da festa que foram publicadas na internet ele procurou atentamente, e ela aparecia em algumas, apenas de costas. Mas mesmo assim ele imprimiu, era a única coisa palpável que tinha dela.
O tempo correu e logo seria o aniversário de casamento de seus pais. Ele já tinha acertado com seu monitor para ficar fora uma semana. E tudo com a intenção de virar a cidade de pernas para o alto para descobrir a moça do sorriso.
Ele chegou muito animado, abraçou seus pais e foi ver seu primo Juliano. Queria contar para o primo, mas antes Juliano falou que tinha uma namorada, e que estava ansioso para apresentá-la a ele. Juliano estava tão encantado com a garota que não parava de falar de suas qualidades.
-- Tu vais conhecê-la, e verás que eu tenho razão. Ela é fora de série. Ela linda demais...
-- Te acalma rapaz. Dá para notar que estas de quatro por ela.. – E Lorenzo deu uma risada debochada do primo. Mas pensou que o primo estava em melhor condição do que ele, que estava apaixonado por uma lembrança.
-- Um dia tu também vais ficar assim, todo gamado como eu estou.
E Juliano continuou a falar sobre a namorada. Lorenzo só escutando.
Juliano trabalhava com seu pai, e ele cuidava do setor comercial da indústria de alimentos da família. Fabricavam massa desde o tempo que seu tetra avô viera da Itália.
Juliano havia combinado de encontrar com Lorenzo na pizzaria. Lorenzo chegou cedo, pediu uma água enquanto esperava pelo primo e sua namorada. Ele estava distraído olhando as mensagens em seu telefone e não os viu chegar.
E quando levantou os olhos, Lorenzo  passou mal. Era a moça do sorriso. Ele estava perturbado, mas tinha que se conter, não podia deixar que percebessem. Levantou-se e cumprimentou a moça:
-- Encantado em conhecê-la. Lorenzo ao teu dispor.
-- Prazer, Daniela.
Juliano estava muito feliz, animado e projetando casamento. Ela era realmente uma pessoa simpática, acolhedora e muito bonita. Tinha uma voz doce e suave. E Lorenzo estava com o coração em pedaços.
Naquela semana Lorenzo saiu com os jovens namorados todos os dias, e até na festa de seus pais ele acabou dançando com ela, já que Juliano não dançava. Foi uma tortura para ele, sentir o perfume de Daniela,  e não poder abraçá-la e beijá-la. E enquanto dançava ela puxou assunto com ele:
-- Se eu entendi certo, tu estás terminando o curso de medicina. É isso?
-- Sim. Mais um semestre, mas já estou trabalhando no hospital.
-- Então és mais velho do que Juliano?
-- Quase um ano. Por que me achas muito velho?
-- Não... Imagina... Pelo contrário, te acho no ponto...
Ela olhou para ele e sorriu. E ergueu a sobrancelha e olhou para ela com um meio sorriso. E ela continuou:
-- Qual especialidade tu escolhestes?
--  Quero fazer traumatologia e estou pleiteando ir para o Canadá, lá o estudo da medicina está bem inserido na tecnologia de ponta. Já me inscrevi, estou aguardando as respostas.
-- Espero que consigas...
-- Obrigado.  E tu o que estudas?
-- Estou no primeiro ano de nutrição.
-- Que bom. Posso perguntar tua idade?
-- Estou com vinte anos.
-- És muito jovem...
-- Tu achas? Me diz muito jovem para o quê? Me explica...
-- Para compromisso sério... Com meu primo.
-- Talvez com ele seja, mas...
-- Mas o quê?
-- Nada, um sonho que eu sonhei... Apenas um sonho que eu gostaria de ver realizado...
-- Sonho impossível? Também tenho um...
-- Quer me contar?
-- Só se me contares o teu..
-- Então vamos deixar cada um com seu sonho...
A música terminou e ele a levou para ficar com Juliano. Agradeceu e foi para a sacada tomar um ar. Ele estava ofegante. Foi esforço demais para se conter...
A varanda estava na penumbra, iluminada apenas pelas luzes do salão. E de repente Daniela estava ali a seu lado, queria uma lembrança dele, e pediu que a beijasse.
Lorenzo ficou sem ação, ele não podia fazer isso com Juliano. Mas ela insistiu:
-- Apenas um beijo, é parte do meu sonho impossível...
E ela o beijou, com doçura, aqueles lábios macios roçando os seus. Lorenzo não resistiu e a beijou com  sofreguidão, ela invadiu sua boca e permitiu que ele a  explorasse com sua língua. Ela afastou-se e disse:
-- Agora sei o que quero. E foi embora, enquanto ele ainda saboreava o gosto de sua boca. E ele pensou, estou perdido...
A ironia da vida, fez com que Daniela ficasse sua amiga, uma boa amiga. Ele prezava a amizade dela embora fosse muito dolorido ver seu primo com a única mulher no mundo que havia mexido com seu coração. Ele tinha a fama de namorador, mas jamais entregara seu coração, e agora seu coração sangrava.
Lorenzo não voltara mais a sua cidade, com a desculpa de muito trabalho e plantões não foi nas festas de fim de ano. Não suportava ver os dois juntos, embora mais de uma vez tivesse pego Daniela olhando para ele de uma forma amorosa. E aquele beijo ainda o perturbava.
Lorenzo queria esquecer, procurou sair com outras moças, mas algo mudara dentro dele, e nenhuma outra o agradava.     Ele precisava urgentemente esquecer Daniela.

Daniela a cada dia pensava mais em Lorenzo, sonhava acordado com o beijo trocado. Tinha sido um beijo rápido, mas tinha mexido demais com ela.
 E diariamente Daniela mandava mensagens para ele, algumas muito provocativas. A maioria ele ignorava. Não podia, não queria estar conectado a ela. E Daniele insistia. E um dia ela em uma mensagem ela revelou: “Naquele dia da procissão eu te vi, sorri e te entreguei meu coração.”
Por isso ela pedira o beijo, esse era o sonho dela... Tinham o mesmo sonho, foi o seu pensamento.
Quando ele leu aquela frase seu coração disparou. Ela o amava? Por que namorava seu primo? E agora que ela tinha se revelado a ele, eles estavam traindo Juliano. Mas já a tinha beijado... Que situação!
Lorenzo não respondeu a mensagem. Achou melhor não mostrar importância, mas rogava ao Senhor que o iluminasse. Queria fazer a coisa certa.
Duas semanas depois Juliano ligou para ele muito chateado, contou  que Daniela tinha terminado o namoro, que fora assim sem mais nem menos. Alegou que não o amava o suficiente, e, ele que já tinha até comprado as alianças. Lorenzo escutou e consolou seu primo. Mas Juliano queria falar, desabafar e todo o dia ligava para seu primo.
Lorenzo não sabia mais o que fazer, e agora seu sofrimento era maior. Amava desesperadamente a Daniela, que o amava também, e ele a desejava, ainda mais depois que conhecia o sabor do beijo dela, mas havia uma questão muito forte que os impedia... E ela tinha machucado muito seu primo, seu quase irmão.
Eles tinham crescido juntos, eram quase da mesma idade, suas mães eram irmãs e seus pais primos e sócios na indústria de massas, herança do “nono”. Eles eram muito ligados, eram como irmãos. Sempre foram sinceros um com o outro, sempre tiveram liberdade para falarem qualquer assunto, e agora... Ele estava escondendo a verdade de seu primo.
Daniela estava insistindo, queria saber se Lorenzo também gostava dela, e ele ainda não dissera nada. Precisavam dar tempo ao tempo. Mas ela estava ansiosa. Contudo Lorenzo ficou firme.
A família de Daniela mudou-se de Santinha. Seu pai trabalhava com uma representação de máquinas industriais e resolveu ir para um centro maior. Ela que iniciara o curso de Nutrição estava pedindo transferência para outra universidade.
O tempo passou...
Lorenzo formou-se em Medicina e foi fazer sua especialização no Canadá. Ficaria fora aproximadamente quatro anos. Ele e Daniela continuavam se comunicando, e ela prometeu que nas férias, ela  iria a Montreal para estar com ele.
Ele morava em uma quitinete, muito pequena, mas confortável. Era em andar alto e tinham uma vista linda da cidade, sobretudo à noite. Daniela como dissera, de fato foi visitá-lo e hospedara-se no apartamento dele.
Lorenzo ficou muito feliz com a chegada dela, e a proximidade o deixou tenso. Sabia que não teria forças para resistir. Ele foi esperá-la no aeroporto.
Quando se viram Daniela correu e o abraçou, e ele a beijou. Ela estava linda... Seus olhos brilhavam de felicidade, e ele a abraçou e a levou para o carro. Estava um dia primaveril, ensolarado, no entanto ainda frio.
Lorenzo não conseguia falar, apenas a olhava e ela embora cansada da viagem, estava muito animada e tagarelava sobre tudo o que via, perguntando sobre a cidade e sobre seus estudos, sua vida, sua diversão.
Quando chegaram ao apartamento, ele rindo disse;
-- Eis a minha morada... É tudo isso.
-- Adorei. Muito aconchegante, e que vista linda!
-- Bacana, não é? A noite é mais bonito, por incrível que pareça.
-- Gostei mesmo. Preciso de um banheiro...
-- É na única porta a esquerda.
Estavam felizes... Ele já tinha preparado um lanche para eles, e foi aquecer. Comeram e conversaram sobre vários assuntos. De repente ela disse:
-- O Juliano já está com outra namorada... A Luciana me contou. Então acho que estamos liberados. Não?
Lorenzo não disse nada, apenas olhou para ela, e pensou que era hora dele falar e demonstrar seus sentimentos por ela. E foi o que fez.
-- Vem cá, precisamos conversar e para inicio de conversa, eu preciso te dizer que um raio se abateu sobre mim, no dia em que te vi na procissão.
Sentaram no sofá e ele lembrou o dia a procissão, que quando a viu seu coração deu pulos, e que ele a procurou naquela tarde pela praça e arredores, e que foi embora da cidade angustiado, porque nem o nome dela ele sabia. Procurou fotos na internet, e mostrou a que ele tinha imprimido. E que depois quando ele a conheceu ela estava namorando seu primo, e que ele não podia fazer nada, a não ser procurar esquecê-la. Mas  que foi inútil... E continuou...
-- E aquela mensagem que me mandaste sobre tu também ter ficado mexida quando olhou para mim, me fez enlouquecer. Como entender se estavas com Juliano? E aquele beijo que trocamos...
E Daniela comentou:
-- Eu também estava desvairada. Até hoje eu não sei por que não terminei antes com Juliano, acho por ele ser daquele jeito, simpático, humilde, sincero... Me sentia muito mal, sentia que estava traindo aos dois. A ti e a ele. E ele falando em casamento...  Me apavorei... Não queria casar... Ainda sou muito jovem... E aquele beijo... Ah me deu forças para terminar com Juliano.
-- Vou ter que falar com ele... Mesmo que ele esteja namorando outra moça, eu não posso continuar sem dar uma satisfação a ele. Sei que hoje as coisas são diferentes, são vocês, as mulheres, que escolhem os homens, são vocês que decidem... Mas mesmo assim... Nós fomos criados como irmãos, e, sempre fomos leais um ao outro... Preciso do sim dele.
-- Então?...
-- Então vamos aproveitar tua estada aqui, vamos passear muito, pois  estou sem aula. Tenho um mês de férias. Não queres tomar um banho?
-- Sim. E qual a programação para a noite?
-- O que queres fazer?
-- Por mim podemos ficar em casa, estou cansada...
-- Então ficaremos em casa, conversando... Namorando...
-- Isso! Vamos ao banho?
-- Vamos...
Após jantarem, Daniela foi para a janela apreciar as luzes da cidade. Era muito lindo. Lorenzo ficou a observando. Ela estava muito linda enfiada naquele pijama com estampa bichinhos... Ela estava sensual...
Ele aproximou-se dela e a abraçou e ficou mostrando alguns pontos da cidade, que iriam visitar. Mas o perfume dos cabelos dela estava o deixando embriagado, ele a queria em seus braços, ele a queria demais.
Começou a acariciar e a beijar seus cabelos, e ela virou para ele e retribuiu seus carinhos. E as caricias ficaram mais ousadas. Ele a levou para a cama... Ela estava nervosa, nunca havia chegado a esse ponto, precisava informá-lo. E meio envergonhada ela falou:
-- Eu nunca fiz...
-- Não!
Ela sacudiu a cabeça, e Lorenzo a abraçou e beijou com suavidade.
-- Que surpresa maravilhosa! Só minha... Serás só minha.
-- Eu vim aqui para isso, ser só tua...
E com muito carinho ele a fez mulher. Estavam felizes... Ficaram longo tempo em silêncio, abraçados querendo permanecer um só.
A semana passou rapidamente, e Lorenzo resolveu vir com ela para falar com Juliano e rever seus pais.  Assim que chegou rumou para Santinha, enquanto que Daniela foi para casa de seus pais em Portinho.
Foi uma bela surpresa que Lorenzo fez para seus familiares, sobretudo seus pais, que reuniram toda a família para festejar a presença dele. Mas ele queria apenas conversar com os pais. Ele estava preocupado, precisava se livrar dessa situação o mais rápido possível.
No outro dia cedo pediu para que os pais lhe dessem atenção, ele precisava resolver um problema sério. E queria que se reunissem as portas fechadas. Sua mãe ficou assustada, e pediu que ele falasse logo. E Lorenzo contou tudo para eles.
Sua mãe, Cássia, ficou triste com a história e disse:
-- Nada mais será como antes...
-- Sim, filho, essa moça perturbou a tua amizade com teu primo, completou seu pai.
-- Mas eu não tive culpa... As coisas aconteceram independentes da minha vontade... Eu até fugi... Mas ela também gostou de mim desde o momento que me viu... Será destino? Será obra de Deus? Mas eu não vou abrir mão desse amor.
-- Vamos esperar para ver no que vai dar tudo isso. Agora vai e fala com teu primo. Deus queira que ele entenda. Disse seu Antonio.
E Lorenzo foi procurar por Juliano no escritório. Estava tenso. Preocupado e Juliano percebeu:
-- O que há contigo? Estás estranho...
-- Precisamos conversar primo...
E Lorenzo relatou tudo desde o inicio, sem deixar nada de fora, até as mensagens dela ele tinha para mostrar, a foto que ele imprimira... Tudo.
Juliano escutou em silencio, mas a medida que Lorenzo ia contando, seu sangue ia fervendo, estava se sentindo traído. Quando enfim seu primo terminou e ele disse:
-- Não aceito. Tu me traíste. Devias ter me falado na hora. Mas não tivestes coragem... Não perdôo.
Lorenzo levantou-se e foi embora. Passou em casa e despediu-se de seus pais. Não sabia quando voltaria, e, se voltaria.
Sua mãe desesperou-se, conhecia seu filho, ele era uma boa pessoa, era correto e sincero. Estava apaixonado e magoado com a situação. Ele não voltaria... Iria se estabelecer no Canadá... Muito longe dela... Talvez não o visse mais... E chorou ao despedir-se do filho amado, seu filho...
Seu Antonio tinha os mesmos sentimentos, sabia que seu filho era honesto e seu coração era reto de intenções. E tinha procurado fazer a coisa certa. Se Juliano não acreditava na intenção sincera de Lorenzo, então não merecia sua amizade. E abençoou o seu filho.
-- Vá em paz! Que o senhor te guie e te proteja. Seja feliz!
E depois de abraçar os velhos, com lágrimas nos olhos e foi embora.
Lorenzo foi à casa de Daniela para conhecer os pais dela. Queria pedir a eles que quando ela tivesse terminado o seu curso, que ela fosse para lá para viver com ele. Casar com ele.
Os pais de Daniela foram muito cordiais com Lorenzo, sabiam que sua filha Daniela morria de amores por ele. E embora preferissem que a filha ficasse mais perto, concordaram com o noivado deles.
Fariam uma pequena reunião com apenas a família. Os pais e a irmã de Lorenzo vieram para juntos festejarem o noivado dos jovens.
Lorenzo tinha mais um fim de semana antes de ir embora. E convidou Daniela para passarem aqueles dias em uma pousada na subida da serra.
Eles aproveitaram ao máximo aqueles dias, passearam, conversaram, deram risadas e se amaram muito. A cada dia eles percebiam que tinham nascido um para o outro.
E na terça feira bem cedo Lorenzo tomou o avião. Daniela foi levá-lo no aeroporto. Ela não queria chorar, queria que ele saísse com a lembrança do sorriso dela, mas não agüentou. Abraçados os dois choraram a separação. Teriam ainda dois anos pela frente.
O tempo correu e Lorenzo  estava terminando seu doutorado. Recebera convite para trabalhar no Centro Médico de Traumatologia da Universidade. E ele aceitou.
Agora tinha se tornado mais escasso o seu tempo livre. Mas ele estava feliz, com muitas saudades de Daniela, contudo logo ela estaria lá com ele. Talvez ele pudesse buscá-la.
Daniela também estava feliz, se preparando para ir. Era muito papel que a embaixada pedia, e ela estava ansiosa para receber seu visto de permanência. Estava cogitando tirar um curso, assim facilitaria.
No fim do ano ela estaria formada, e então poderia ir para junto de seu amado. A viagem estava marcada para inicio de fevereiro. Seus pais programaram uma temporada na praia, ela adorava praia. Foram dias ensolarados, quentes e com um mar convidativo. Ela aproveitou muito junto de seus pais.
Faltavam só dois dias para a viagem. Daniela saiu, iria ao salão de beleza, queria mudar o corte do cabelo, fazer as unhas... Enfim tudo o que tinha direito. Queria chegar linda para ele.
Ao retornar para casa, já quase chegando seu carro foi atingido por uma moto em alta velocidade. Daniela perdeu os sentidos, foi socorrida e levada para emergência do hospital com fraturas expostas na perna e no braço esquerdo. Tinha batido com a cabeça, embora estivesse usando o cinto de segurança. Ela estava muito ferida.
Seus pais foram avisados, saíram correndo para o hospital  e se assustaram com as noticias que receberam na recepção do hospital. Teriam que aguardar o médico, ela estava em cirurgia.
Depois de duas horas de espera o médico veio falar com eles. A cirurgia de emergência tinha sido feita, mas pelo estado da perna... Ela ainda estava desacorda, e teriam que aguardar para fazer exames neurológicos. Luis e Helena estavam apreensivos com o que o médico havia falado. Foram à capela do hospital para rezar.

Enquanto isso Lorenzo estava feliz preparando a chegada de Daniela, agora ele estava morando em um lugar melhor. Era fora do centro da cidade, num bairro muito aconchegante com casas de madeira pintadas em cores fortes. A dele era amarela com janelas e portas branca, com um pequeno jardim na frente.
Era inverno, mas no verão teriam um recanto lindo para apreciar. A casa era de dois pisos, embaixo tinha hall, escritório, lavabo, sala de estar e jantar e uma ampla cozinha que dava para uma aérea envidraçada nos fundos, com vista para o pátio. Em cima havia duas suítes e um closed. Estava toda mobiliada. Era muito linda e com certeza Daniela iria gostar.
Ele tentou falar com ela e não tinha conseguido, deixou recado, e não houve resposta. Bem depois ela ligaria. Foi ao mercado fazer compras, queria abastecer a despensa e refrigerador, com aquele frio, Daniela não precisaria sair.
Ele  estranhou que Daniela não tivesse respondido as suas mensagens. Tentou novamente e seu numero dava como fora de área. Ligou então para a casa e também não obteve resposta.
Esquisito! Foi o que ele pensou.
Tinha que voltar ao hospital. Ficaria de plantão e tinha muito que fazer. No outro dia Daniela estaria com ele. Não iria esquentar a cabeça.
Lorenzo saiu do plantão, foi em casa, tomou um banho, fez um café e foi para o aeroporto para esperá-la. Não tinha certeza do horário de chegada, tinha conexão e podia atrasar. Mas queria estar lá cedo.
E ele esperou... O avião aterrissou... E ela não chegou!
Lorenzo ficou atordoado, algo tinha acontecido. Por que Daniela não estava naquele avião? Por que não tinha avisado? Por que não atendia as suas ligações? Por que esse silêncio? Por quê? Tinha vontade de gritar...
Ele ficou ali no aeroporto sem saber o quê fazer, o quê pensar. Depois de muito tempo ele levantou-se e foi embora. Dirigiu atônito, só se deu conta que chegou em casa. Sentou no sofá e ali permaneceu com o telefone na mão tentando falar com ela.
De repente veio em seu pensamento que ela havia desistido dele. Por isso ninguém atendia ao telefone. Ela o havia trocado por outro. Afinal ela já tinha feito isso com seu primo...
E algo dentro dele incendiou, o choro brotou e soluçou como criança. O amor de sua vida o havia deixado. Teria que ser forte. Iria se dedicar ao trabalho e em suas horas livres iria estudar mais para aprofundar seus conhecimentos. Teria que se manter ocupado, com sua mente ativa e seu corpo cansado, para a noite poder dormir e sobreviver a esse desengano.
Nessas horas sentia falta de seus pais, que sempre eram tão amorosos e tão consoladores. Ele lembrou quando sua irmã Giovana, e de seu cunhado Marcelo, que antes de noivarem tiveram uma briga séria. Ele mesmo tinha achado não nunca mais se olhariam outra vez. Mas sua mãe que com carinho conversou com sua irmã e a fez perceber que tinha sido muito intransigente com o namorado, e que ao mesmo tempo seu pai falou com Marcelo colocando a mesma questão. Então os namorados se derem conta que eles estavam jogando fora o amor que os unia por serem muito birrentos.
Mas esse não era seu caso.
Talvez se ele pedisse a mãe para procurar Daniela...
Não agora! Talvez mais adiante...

Quando seu Luis foi ao departamento de  trânsito receber o carro destruído de Daniela, procurou por seu telefone e não achou. Perguntou aos guardas se havia bolsa e outros pertences dela, eles lhe entregaram um saco lacrado com todas as coisas que localizaram ali perto do carro.
E ao chegar em casa entregou tudo para Helena conferir as coisas da filha, e o telefone não foi encontrado. E o pensamento foi que tinha sido roubado. E agora como fariam para falar com Lorenzo. Teriam que esperar ele ligar.
O caso era que Daniela ainda estava desacordada, ela estava em coma induzida por causa das dores na quebradura da perna. Ainda não tinham  feito todas as cirurgias necessárias. Também eles não tinham a certeza dos médicos que ela voltaria a andar normalmente, sem auxilio, porque o a cabeça do fêmur estava estraçalhada.
O momento era de espera...
O tempo passou... E seis meses depois Daniela continuava na mesma situação. Ela havia acordado, mas não reconhecia ninguém. Mostravam fotos dela mesma e ela não se reconhecia. Então Helena resolveu mostrar uma foto de Lorenzo que ela havia encontrado na bolsa da filha. E os olhos de Daniela brilharam. Ela disse que conhecia aquele rosto, mas não sabia quem era. Mas que ela gostava daquele rosto.
Os pais de Daniele estavam esperançosos, o médico havia sinalizado para melhora dela. Mais uma cirurgia e estaria resolvido o problema do quadril, mas salientou que se eles pudessem buscar um hospital que tivesse a tecnologia de ponta, seria muito melhor. Eles teriam que decidir. Sairia caro, mas ela ficaria com mais qualidade de vida.

Lorenzo não se conformara. Ele sabia que Daniela o amava, sempre sentiu uma afinidade muito significativa entre eles. Alguma coisa estava errada. Já se passara esse tempo todo...
Ele teria um período de férias entre os semestres, e conseguiu no hospital uma licença pelo período de vinte dias. Então resolveu que iria tirar tudo a limpo. Ele precisava saber a verdade dos fatos. Já estava magoado com tudo e ele não sossegaria até desvendar esse mistério.
Não avisou ninguém que viria. Iria ser uma surpresa para todos. Ele chegou e foi direto a casa de Daniela. Estava tudo fechado, mas não abandonado. Então foi a casa ao lado pedir informações sobre eles. E para seu espanto a senhora disse:
-- Eles não param mais em casa desde o acidente da filha. Eles estão no hospital.
-- Daniela se acidentou?
-- Sim, há muito tempo. A menina estava pronta para viajar e dois dias antes sofreu um acidente grave. Ela não se lembra de mais nada...
Lorenzo sentiu o seu sangue gelar. Tudo o que ele tinha imaginado e sua amada sofrendo no hospital.
-- A senhora pode me informar qual hospital ela está?
-- Sim, no Hospital Geral.
-- Obrigada.
Lorenzo pegou um taxi e foi para lá. Quando chegou na recepção ainda estava tremendo, e com a informação foi direto ao quarto dela. Chegou em frente a porta e não tinha coragem de entrar. Respirou fundo, bateu levemente e dona Helena veio abrir.
Quando ela viu Lorenzo, não se conteve, o abraçou e chorou muito. E dizia:
-- Nós tentamos te avisar, mas se perdeu o telefone dela. Não tínhamos o numero de ninguém... Mas agora tu estas aqui... Talvez tua presença ajude ela lembrar...
-- Posso entrar? Ela está acordada?
-- Sim, entre meu filho...
E quando Lorenzo a viu  seu coração disparou, lá estava ela em uma cama de hospital abatida pelo sofrimento... Ele se aproximou devagar, tomou sua mão e a beijou.
Daniela estava de olhos fechados e quando ela o viu seu rosto se iluminou e ela disse:
-- Lorenzo meu querido, não pude ir..
-- Sim amor eu sei... Mas agora não te agita, eu estou aqui contigo, vou ficar ao teu lado.
-- Que bom... Eu tive muito medo de te perder...
-- Shhshh...
Helena ficou sem entender, ela não se lembrava de nada... E agora... Louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!
Lorenzo puxou uma cadeira para junto da cama, sentou-se e ficou fazendo carinho em seu rosto. Ela sorria para ele e seus olhos brilhavam de felicidade.
Helena saiu deixou os dois a sós e foi procurar o médico para lhe contar que a memória dela havia voltado pelo menos uma parte.
O doutor chegou e pediu para examiná-la. Lorenzo se identificou como médico traumatologista e pediu as informações sobre o acidente e da evolução do tratamento. Gostaria de acompanhar os exames dela.
Depois de estar reunido com os médicos e com os pais dela, Lorenzo disse que poderia levá-la para o Canadá. O hospital que ele trabalhava era um dos melhores nesta área em nível de mundo.
Ele entraria em contato com o professor dele para ver qual a melhor data para removê-la. Os pais dela se pudessem deveriam ir também para acompanhá-la.
Lorenzo ligou para seus pais e pediu que fossem ter com ele. Ele ficaria apenas uns dias e não iria até Santinha. E justificou contando a situação de Daniela.
Antonio e Cássia vieram ver o filho e hospedaram-se na casa de Luis e Helena. Eles ficaram chocados com tudo que havia acontecido com Daniela. E eles tão perto poderiam ter vindo ajudar...
Ficou tudo acertado com o hospital e o transporte poderia ser em avião de carreira, mas em assento de primeira classe, para ela ir deitada. Dentro de uma semana eles poderiam ir.
Antonio disse a Lorenzo que  eles tinham vendido o prédio do depósito antigo e esse dinheiro era para os filhos. Então assim que ele chegasse em casa iria providenciar para ser depositado na conta dele. Lorenzo agradeceu ao pai, e disse:
-- Obrigado pai. Esse dinheiro vem em boa hora, porque doença sempre tem um alto custo. Acho que seu Luis está gastando uma fortuna, embora ele tenha plano de saúde, mas muita coisa o plano de saúde não paga.
-- Sim. Mas agora terás um bom saldo bancário.
Apenas Lorenzo e Daniele iriam, nem dona Helena e nem seu Luis tinham passaporte. Helena iria providenciar para ir o  mais breve  possível.  Mas Luis  ficaria  porque  precisava  gerir  os  negócios,  que  estava há  muito tempo por conta dos funcionários.
Chegou o dia do embarque. Todos foram despedir-se dos jovens. Cássia ao abraçar o filho disse:
-- Te cuida meu querido que tu estás muito magro e abatido.
-- Ok mãe. Não te preocupa comigo. Fica com Deus. Te amo mãe...
-- Deus te abençoe meu filho. Também te amo.
-- Tchau pai. Cria coragem e vem me visitar... Vou te esperar... Te amo.
-- Vai em paz meu filho. Te amo...
Por fim embarcaram. Ele acomodou Daniela com todo o cuidado. Pediu que fechassem a cortina em torno deles. Assim ela não seria alvo de olhares dos ouros passageiros.
A viagem foi tranqüila, Daniela dormiu a maior parte tempo, ele havia dado um calmante para ela.  Eles teriam que esperar cerca de uma hora para a conexão com outro vôo. E Daniela foi levada para a sala vip.  A troca de aviões foi feita com cuidado pelos funcionários, que os acomodaram e os isolaram com uma cortina. Ele tratou de toas as necessidades dela durante o vôo. Sempre com muito amor e cuidado.
Quando eles chegaram ela foi levada diretamente  para o hospital. Lorenzo a deixou aos cuidados de um colega e foi em casa. Precisava tomar um banho, descansar um pouco, já que não dormiu no avião. Depois de três horas estava de volta pronto para assumir os cuidados dela.
No dia seguinte uma equipe iria analisar a situação dela, para programarem a cirurgia. Decidiram realizar a operação no outro dia, era preciso fazer alguns exames apenas. Lorenzo pediu para assistir a cirurgia, mas seu professor recomendou que não. Ele poderia ver do visor para estudantes.
A cirurgia foi um sucesso!
Quando Daniela    acordou, Lorenzo estava preocupado em saber se seu cérebro estava  ligado na realidade, ou estava novamente desmemoriada, mas quando ela o viu deu um sorriso e perguntou:
--  Como foi tudo?
-- Tudo bem meu amor. Agora é só se recuperar.  Mas descansa. Já avisei todo mundo.
Ela ficou ainda um tempo no hospital.
 Uns dias antes de Daniela ter alta, sua mãe Helena chegou. Lorenzo ficou aliviado, pois o trabalho dele absorve muitas horas semanais, com plantões aos fins de semanas, pelo menos dois ao mês, mesmo que contratasse uma cuidadora, Daniela com certeza se sentiria muito só. Enquanto ela estava  no hospital ele sempre passava rapidamente para dar uma olhadinha nela.
Ele arrumou uma cama de hospital, para Daniela no escritório, porque ela ainda não podia caminhar e facilitaria para todos os cuidado com ela.
Ela chegou e se encantou com o jardim da casa, que ainda estava florido. Era outono. Ela adorou a casa, pois Lorenzo a levou para um passeio antes de acomodá-la na cama.
Helena também gostou do lugar, era perto do hospital e sua filha moraria em uma casa linda, confortável  e aconchegante. Sob os cuidados da mãe a recuperação de Daniela foi rápida, já estava com aspecto saudável, mas ainda precisava completar as seções de fisioterapia.
Estavam todos muito animados com a recuperação de Daniela, ela própria queria andar, esforçava-se para fazer todos os exercícios para mover e firmar sua perna.
Lorenzo sabia que ela não voltaria a ter os movimentos como antes, mas só pelo fato de ela não precisar de auxilio para andar era uma maravilha. Mas ele não se importava, apenas queria que ela se livrasse de tudo aquilo para eles tomarem de volta as suas vidas e agora em parceria no amor.
Logo seria Natal e Helena resolveu voltar, não queria ficar longe de seu marido e Daniela estava muito bem. Andava com auxilio  que era temporário. Talvez até o fim do ano ela já estivesse andando sozinha. Ainda tinha dificuldade para sentar e levantar, mas Lorenzo teria um período de férias e cuidaria dela.
E o Natal foi lindo.
Eles enfeitaram toda a casa.
Daniela estava emocionada, juntos eles cozinharam a ceia e desfrutaram de uma intimidade que os enchei de alegria. Estavam começando a vida a dois. Riram, brincaram e por fim se amaram. Eles estavam realizados.
Depois das festas a vida deles entrou numa rotina que agradava muito a Daniela. Ela não podia ainda sair para estudar. Mas ela aproveitou para ler e aprofundar conhecimentos. E se inspirou e começou a escrever um livro sobre nutrição.
Os dias passaram rápidos e agora ela estava firme, não precisava mais de auxilio para andar e até a escada ela subia. Lorenzo sempre que estava em casa a ajudava com a limpeza, pois certos movimentos ela ainda não fazia. Estavam felizes...
E vida começou a fluir...
Daniela publicou seu livro... Foi muito bem vendido
O tempo correu e Lorenzo estava terminando sua residência. Havia prestado exame e fora aprovado, e começou a fazer parte do quadro medico do hospital.
Tudo melhorou seus horários e seu salário. Aproveitaram as férias e viajaram pelo país e agora estavam bem ambientados com o idioma e com o modo de viver do povo.
Eles queriam um filho, mas isso teria que esperar um pouco mais, pois a curtição deles continuava muito intensa, e eles cada dia mais apaixonados. Eles estavam enfeitiçados pelo amor que os unia.
                                        Maria Ronety Canibal
Imagens via internet