terça-feira, 15 de novembro de 2022

NADA É PARA SEMPRE


 

                        NADA É PARA SEMPRE

 

Núria estava feliz!

Sua vida tinha ganhado um significado, agora ela tinha uma razão para viver. Fernando, o seu grande amor, era o motivo de sua felicidade. Ela gostava de lembrar, o modo avesso, de como eles se conheceram.

Desde que a sua família foi mal de negócios, ela precisou buscar o seu próprio sustento. Ela nunca se sentiu bem-vinda naquela casa. Seu pai, depois da morte de sua mãe, casou-se novamente, e Rute, a sua madrasta, não a suportava.  A falência do pai, foi a oportunidade que Núria teve, para pular fora. E decididamente arrumou as suas poucas coisas e tomou o seu rumo.

Aos 18 anos, ela saiu de casa e mudou-se para uma pequena cidade turística. Alugou um quarto, em uma pensão barata e iniciou o seu próprio negócio. Um trabalho simples, mas seguro.

Com as economias que tinha guardado ela comprou uma carrocinha de pipoca usada, pintou de cor de rosa enfeitada com branco, e Núria, sempre usando um avental impecável, passou a andar pela pequena cidade, oferecendo o seu produto.

Ela ficou surpreendida com o dinheiro que juntou no fim do mês. Sorriu ao pensar que ser pipoqueira era um negócio rentável.

Assim, o tempo passava e a vida dela prosperava.

Dona Laura, a dona de pensão onde morava, era uma boa mulher. Conhecendo a história de Núria, se propôs ajudá-la. Além de costurar os aventais, ela também os lavava e passava, diariamente.

Naquele dia Núria tinha saído muito cedo de casa. Uma neblina deixara a visibilidade baixa, e de repente ela foi abalroada por uma camionete enorme. O carrinho de pipoca virou e ela caiu no asfalto.

Fernando parou o veículo, desceu rapidamente e muito assustado, lhe perguntou:

-- Moça, como estás? Eu não te vi... Está com alguma dor... Deixe-me ajudá-la a levantar. – Enquanto falava ele a pegou e a colocou em pé. Olhou-a de cima a baixo e comentou. – Não vejo nenhum sinal de sangue. Mas vou levá-la ao hospital.

-- Não, obrigada. Preciso desvirar o meu carrinho... – Disse ela, gemendo ao mover o braço, e com dificuldade de firmar o pé no chão. – É o meu instrumento de trabalho.

-- Está bem. Vamos erguer o carrinho. Mas, também vou levá-la ao médico.

Fernando olhou em volta, e viu que algumas pessoas estavam ali assistindo.  Ele notou que aquelas pessoas conheciam a moça. Um homem e um rapazote rapidamente ergueram o carrinho, e viram que estava quebrado.

-- Olha, não tem condições de uso. E agora? – Disse o homem.

Mais pessoas se juntaram ao grupo que olhava para Núria, que muito desolada falou:

-- Como vou fazer? Eu tiro o meu sustento vendendo pipoca...

-- Vamos dar um jeito. Primeiro precisamos ir ver se estás machucada. – Afirmou ele. – O senhor mora aqui?

-- Sim. – Disse o homem – Posso ficar com o carrinho, enquanto a moça consulta o médico.

-- Obrigado! – Disse Fernando abrindo a porta da camionete para que ela entrasse, e a ajudando a acomodar-se.

Já estavam a caminho do hospital quando ele se deu conta que não sabia o nome dela:

-- Eu sou Fernando Ruiz, e qual é o teu nome?

-- Núria Marques.

-- Não te preocupes com nada. Agora vamos ao hospital, depois vamos fazer o B.O. e logo vamos ver onde posso comprar um carrinho novo para ti.

-- É preciso mandar fazer.  – Observou ela sentindo-se desanimada. – E depende da boa vontade do carpinteiro. Se ele tem outra encomenda, vai demorar...

-- Não te preocupas, vou dar um jeito. Eu prometo.

Ao entrar no hospital todos abriram passagem para Fernando, que parecia ser o dono de tudo. Núria achou a atitude dele muito autoritária, ditando ordens. E ela não gostou do jeito dele.

Os ferimentos dela não eram graves, mas necessitavam de cuidados e Núria precisou ficar em repouso por um longo período. E sem poder trabalhar ela estava muito preocupada com a sua situação financeira.

Fernando ia seguidamente visitá-la. E dava-lhe notícias da carrocinha que tinha mandado fazer. Ele, também, já havia comprado todas as medicações que ela precisava tomar, e sem querer constranger a moça, ele havia acertado com a dona Laura, todas as despesas do mês.

Dona Laura estava muito admirada com a atenção especial que Fernando dispensava a Núria. Um dia ela perguntou a moça?

-- Tu sabes quem é esse rapaz?

-- Não sei nada sobre o Fernando. A senhora o conhece?

-- Não! Mas sei que a família dele é dona de quase toda a cidade. Gente muito rica e importante.

-- Hum. Então é por isso que no hospital todos são “sim senhor” para ele, o achei autoritário.

-- Sim, o hospital é da família deles, inclusive leva o nome do padroeiro do lugar de onde vieram. Hospital Santiago. Eles construíram o prédio e contrataram os médicos, e é uma referência em alguns tipos de tratamento.

-- Eu não fazia idéia de que ele fosse tão importante, e no entanto, ele tem sido muito atencioso comigo.

-- Sim, e ele parece ser um bom rapaz. Eles são quatro irmãos, esse deve ser o mais moço.

-- Além do hospital o que mais eles têm aqui na cidade?

-- Ora, quase tudo. Escola, hotéis, restaurantes, lojas, prédios... A cidade está se tornando turística graças ao trabalho do pai dele, o dr. Felipe Ruiz que foi prefeito. Hoje é o filho mais velho que administra a cidade, o dr. Tiago Garcia Ruiz.

-- Uma família de alto padrão!

-- Sim. Cuidado! Não vai te apaixonar, pois o Fernando é um rapaz simpático, educado e bonito. Sei que ele é cativante, mas não é para ti.

-- Eu sei. Não se preocupe. Sei que sou um nada perto dele. Mas concordo que ele é muito lindo, aqueles olhos verdes são magníficos...

 

Fernando era um homem jovem, de 28 anos, e recentemente tinha ficado noivo de Ariele Montes, por influência de sua família.

Ariele era filha de José Montes, um vinicultor de renome. Sua vinícola tinha fama internacional, e por isso,  trazia muitos turistas para a região.

Fernando nutria um sentimento de amizade por Ariele, se conheciam desde crianças, e foi natural eles assumirem uma relação, que renderia muitos lucros a ambas as famílias.

O casal formava um lindo par, pois a Ariele era muito culta, elegante, e era dona de uma beleza incomum. Formada em Administração ela trabalhava com pai. Era filha única e muito mimada, e vivia com se fosse uma princesa. Suas vontades eram uma ordem!

E Fernando, o mais novo dos irmãos, cresceu sem regalias. Desde cedo, ele descobriu que deveria correr atrás das coisas que desejava. Atualmente, trabalhava com o pai, na construtora e era responsável pela área de Marketing. E isso o obrigava a viajar seguidamente.

Com a data do casamento marcada, Fernando andava tenso e muito contrariado. Estava ciente de que Ariele não era o que queria para si mesmo, ela não era a esposa almejada. E estava arrependido de ter se deixado levar por seus familiares.

Naquela manhã ele tinha saído de casa preocupado, pois estava descobrindo que Ariele não era a flor que aparentava ser. Ela era muito mais espinhosa.

Um tanto distraído com seus pensamentos e com uma densa neblina que dificultava a visibilidade, ele acabou atropelando a pobre pipoqueira. Sentia-se culpado. A moça precisava trabalhar e ele havia destruído o seu meio de trabalho. Por isso ele a visitava regularmente.

 A moça ainda não estava restabelecida, e, portanto, não podia retomar o seu trabalho.

Núria era uma jovem de 20 anos, madura para sua idade, e muito bonita, ao contrário de Ariele, ela tinha uma beleza angelical. Seus traços eram delicados, sua pele suave e muito clara, contrastava com os olhos e cabelos escuros. Era educada, tranquila e cativante.

E Fernando estava muito atraído por ela. Agora ia quase todos os dias vê-la. Não conseguia mais ficar sem aquele sorriso encantador, sem escutar aquela voz melodiosa, enfim não conseguia mais ficar longe dela. Um novo sentimento surgiu no coração de Fernando. Era um bem-querer, algo forte e inédito para ele.

Consciente de que Núria era o oposto de Ariele, de que ela era muito jovem, e de que precisava ainda estudar; e sobretudo de que ela não estava à altura de sua família, ele a queria em sua vida, não se importava com esses detalhes, ele precisava dela e com urgência.

Ele tinha uma urgência, parecia que o seu tempo era breve. E por isso, Fernando não queria desperdiçar nenhum segundo de felicidade. Ele admitiu, para si mesmo, que a amava apaixonadamente. Isso sem nunca ter tocado nela. Era um amor puro, algo inexplicável.

Por isso, Fernando tratou de desfazer o seu compromisso com Ariele. Era evidente que ela também estava arrependida... pois, as brigas entre eles, tinham se tornado intensas e constantes.

As famílias quando souberam que Ariele e Fernando haviam desfeito o noivado ficaram alarmadas. Ariele aproveitou a ocasião e foi viajar. A Australia era o seu destino.

Fernando permaneceu na cidade, agora livre para conquistar o amor da sua pipoqueira.

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Enfim Núria estava liberada para poder trabalhar.

-- Minha amiga, eu tomei a liberdade de fazer algumas alterações no teu negócio. Tudo para melhorar. A papelada está toda pronta, tu só precisas assinar. Mas antes, quero te mostrar como será. Combinado?

Ele a levou até o “O Mundo Infantil”, um parque de diversão com um grande fluxo de pessoas. Bem no centro, onde havia a praça de alimentação, e lá estava a carrocinha de pipoca, toda cor de rosa, com o nome pintado em branco. “Pipocas DA MOÇA BONITA”.

-- Um lugar esplendido para os negócios, eu reconheço, no entanto, eu não tenho como pagar pelo espaço. – Observou ela com tristeza. – Aqui eu venderia bem mais.

-- Sim, e por um preço melhor. Não precisas pagar por nada. Eu criei a tua marca de pipocas, mais adiante poderás até ter uma franquia. Eu te prejudiquei muito, sem intenção, é claro. E essa é a forma que eu achei de te ressarcir do teu prejuízo. Está tudo pago e no teu nome. É só assinar os contratos.

-- Não! Tu já pagaste mais até do que o necessário. Sei que pagou as minhas despesas do mês, minha medicação, e aqui está a carrocinha nova.

-- Assina esses papeis e aceita está oportunidade que está a tua frente. Eu fui culpado, vinha distraído e não te vi. Me ajuda a acalmar a minha consciência. Por favor!

Núria olhou em volta. Trabalhar ali seria muito bom, não precisaria mais empurrar a carrocinha e andar por toda a cidade... Seria muito mais confortável, além de estar protegida das intempéries. Decidiu aceitar.

-- Está bem vou aceitar. – Disse ela sorrindo.

-- Vamos até o meu escritório. – Respondeu Fernando a tomando pela mão. – Venha, é aqui em frente.

O prédio em que ele trabalhava era moderno, bonito e do último andar se avistava os limites da cidade. Núria apreciou a vista. Depois que ela assinou todos os documentos, Fernando lhe fez um convite.

-- Para comemorar eu vou te levar para almoçar na Galeteria do Abuelo. Sabes o que significa abuelo?

-- Sei, é uma palavra espanhola que significa avô ou vovô.

-- Exatamente. Foi do meu avô, até ele morrer. Hoje a minha família administra, e é um lugar muito bom.

-- Eu sei, mas nunca fui.

-- Aceitas?

-- Sim. Vamos estou faminta.

Aquele almoço selou a amizade entre eles.

A partir daquele momento eles passaram a se ver quase todos os dias.

A relação tinha se tornado sólida, aliás, era muito mais do que amizade, era amor que eles sentiam um pelo o outro. Um amor ainda contido.

 Núria estava prosperando, pois, a pipoca DA MOÇA BONITA, tinha conquistado um lugar de destaque e com o seu sabor especial, que agradou, especialmente as crianças.

Fernando mirava no futuro, e a pedido dele ela se preparou para prestar vestibular para a faculdade de Nutrição, que o seu ramo.

O tempo passava, e depois de ingressar no curso de Nutrição, Núria precisou contratar uma senhora para ficar na parte da manhã, enquanto estudava.

Tudo fluía em sua vida.

A paixão era grande, e Núria aceitou a proposta de Fernando, e mudou-se para o apartamento dele, assumindo assim publicamente um relacionamento sério.

Fernando, que estava exultante de felicidade, levou a sua amada para conhecer a sua família. Aos sábados, todos os filhos e netos se reuniam na casa de Felipe e Anete Ruiz, para o almoço semanal.

E naquele dia Fernando, sem avisar a família, apareceu com a namorada a tiracolo. Ele queria fazer uma surpresa. E fez! Todos olharam a pobre Núria de alto abaixo, e a cumprimentaram com educação e frieza.

Ela manteve a cabeça erguida, não iria se deixar abater pela situação. Nenhuma das pessoas ali presente, conversou com ela e tão pouco a dona Anete se esforçou para inclui-la no assunto. Ao contrário, mantiveram distância, e a deixaram sozinha na sala.

Fernando estava reunido com o pai e os irmãos na outra sala, conversando sobre negócios. E quando se livrou da reunião, ele a viu sozinha e isolada, Fernado a pegou pela mão e saiu furioso da casa dos pais. Sua família iria pagar caro por essa atitude.

O namoro continuava firme, apesar de estar enfrentado algumas dificuldades por causa da família dele, especialmente a mãe dele, dona Anete. Mas Fernando não ligava e justificava, dizendo:

-- Minha mãe é muito boa, porém autoritária, eu a amo, afinal é minha mãe. No entanto, não vou permitir que interferira na minha vida amorosa. Eu quase fiz a besteira de me casar com a Ariele, a moça escolhida pela família. Tive a sorte de prever o futuro turbulento que me esperava. Saltei fora na mesma hora. A Ariele também ficou feliz. Nós estávamos noivos só para satisfazer a vaidade de nossas famílias. E agora reagem negativamente a tua presença. Eles nem te conhecem... O que mais me entristece, é que tu ficaste magoada com as atitudes arrogantes de dona Anete.

-- Ninguém merece ser rejeitada gratuitamente... Eu não vou me abater. Não vou dar esse gosto a elas, jamais! Eu tenho a ti, e é só o que importa. Nem minha família e tão pouco a tua. Apenas nós dois. Pertencemos um ao outro. Temos o nosso mundo próprio.

-- Tens razão meu amor. Eu preciso manter as relações comerciais, mas as relações familiares morreram. Eles não me respeitam. Deviam ao menos, em consideração a mim, ter te tratado com atenção. Vamos viver o nosso amor, vamos ser felizes... e aproveitar o tempo que temos.

-- Sim vamos ser felizes para sempre.

O tempo passava, e Fernando nunca mais pisou na casa dos pais. Ele vivia exclusivamente para a sua amada. Eles passeavam, curtiam a vida, eram felizes.

Núria tinha terminado o seu curso de Nutrição. Logo conseguiu trabalho numa clínica de repouso para idosos. O lugar onde ela trabalhava era lindo. Um casarão em meio um jardim magnifico, cercado por um bosque natural. E muito perto do local onde morava.

A rotina do casal seguia perfeita.

Naquela tarde após deixar a clínica de repouso, Núria passou no mercado e comprou alguns itens específicos. Queria fazer daquela noite, uma noite inesquecível, por isso fez um jantar especial.

Quando Fernando entrou em casa, ela o surpreendeu com a mesa posta com elegância e com velas acesas. Núria havia comprado um presente para ele, que daria na hora da sobremesa.

-- Isso é inspiração, meu amor? – Perguntou Fernando a abraçando.

-- Sim. Eu penso que essa noite ficará em nossa memória, porque será única. – Respondeu Núria sorrindo.

-- Vou tomar uma chuveirada. Prepara as bebidas. – Disse ele se dirigindo ao quarto.

O jantar foi agradável, Núria cozinhava muito bem. Depois de saborearem a sobremesa, ela alcançou para Fernando um pequeno pacote.

-- O que é isso? – Disse ele sacudindo a pequena caixa, que não emitia barulho.

-- Abra, e saberás porque está noite será inesquecível...

Fernando abriu o pacote e se deparou com um par de meia infantil. Ele a olhou e se emocionou.

-- Tu estás gravida, minha querida... Um filho a caminho... Ah... eu te amo, te amo tanto... – Disse ele a abraçando e a beijando.

Naquela noite eles se amaram com paixão e emoção. Depois de fazerem amor, ele a manteve junto dele e sussurrou:

-- Vamos nos casar. Essa criança terá uma família de verdade, o amor será visível para ela, porque nós nos amamos sinceramente.

-- Sim, e o nosso amor será para sempre assim, sincero e profundo.

-- Amanhã vamos ao médico. Quero que sejas muito bem cuidada.

-- Gravidez não é doença... Eu já estive na minha ginecologista. Dra. Marina Couto.

-- Eu a conheço, é muito boa. Mas eu quero te acompanhar, quero conversar com ela... – Afirmou Fernando.

-- Está bem vou marcar um horário.

-- Amanhã! – Insistiu ele. – Agora vamos dormir.

 

Nos dias que se seguiram, Fernando procurou o seu amigo Mateus, que era advogado. Pediu ao amigo que formulasse um testamento, onde Núria era a única beneficiaria de todos os seus bens, se algo lhe acontecesse antes da celebração do casamento.

-- Meu amigo, estás doente? Fazer um testamento é coisa de velho. – Disse Mateus zombando.

-- Eu sei, mas conheço minha família... Núria não tem ninguém, e se algo me acontecer eu quero pelo menos deixá-la com segurança financeira, e estamos grávidos.

-- Desculpe. Não devia ter brincado com algo tão sério. Sei que a tua mãe não aceitou a tua futura esposa na família. A fofoca se espalhou pela cidade e muitas pessoas ficaram indignadas com a atitude dos teus familiares, até porque, os teus irmãos e cunhadas, poderiam ter dado alguma abertura a moça.

-- Dona Anete dita as ordens. Tu bem sabes...

-- E como sei! Também não passei no teste de aprovação. Minha família não tinha muitas posses.

-- Exatamente.

Fernando querendo compensar a sua amada, pela forma deplorável que tinha sido tratada por sua família, planejou uma viagem.

Ele a levou para conhecer Paris, mais um sonho que ela iria realizar. Era o seu presente de casamento. A viagem foi alegre e divertida. Núria se apaixonou pela cidade... Antes de voltar eles atiraram um cadeado com os seus nomes gravados, no rio Sena, já que na ponte não era mais permitido colocar.

Voltaram animados. Dentro de um mês estariam definitivamente ligados pelos laços da lei. A gravidez seguia dentro da normalidade e estava entrando para o quinto mês.

O casamento seria no próximo sábado.

Precisamente naquela semana Fernando precisava viajar, e na segunda feira bem cedo ele pegou a estrada, para retornar na sexta feira, o mais tardar.

Mas antes ele foi até a casa dos pais para informar sobre o casamento, e foi muito breve ao dar a notícia.

-- Passei para dizer que serei pai, e no próximo sábado, as 11h estarei no cartório, diante do juiz de paz celebrando o meu casamento com a mulher da minha vida. Depois estaremos diante do padre, e Núria, enfim será a minha esposa. Com licença preciso pegar a estrada.

Ele saiu apressado. Não queria conversar, mas precisava anunciar o seu casamento. Ele guardava uma profunda mágoa de sua família, principalmente da mãe, que nunca fez um gesto de arrependimento e de conciliação.

Enquanto ele dirigia pensava nas vezes que foi discriminado por seus irmãos. Hoje ele entendia a razão. Seus irmãos eram soberbos, não se interessavam pelos mais desvalidos, inclusive, retiravam da cidade, as pessoas mais humildes, que chegavam em busca de trabalho, e de melhores oportunidades. Queriam que a cidade tivesse um alto padrão, coisa que ele não concordava. Sempre pensou que todas as pessoas tinham os mesmos direitos, as mesmas oportunidades. Cansou de discutir, principalmente com o Pedro, o irmão número dois.

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“Depois de tempestade vem a bonança.”

É o que diz o ditado popular.

Após uma tormenta assustadora, o sábado tinha amanhecido com calmaria, o sol brilhava iluminando o dia. Era o dia do seu casamento... Era para ser um dia de felicidade.

Mas a felicidade tinha sido arrancada de sua vida, e a tristeza e o desespero imperavam. Núria chorava copiosamente!

O seu amor não estava mais ao seu lado. Fernando tinha partido para sempre.

Ela recordava a última vez que fizeram amor. Eles haviam se entregado com paixão e emoção, como se fosse a derradeira vez, como se não houvesse amanhã. Núria pressentia que Fernando vivia a sua vida intensamente, como se fosse sempre a última vez... E foi!

Núria tentava recordar o dia anterior, precisava lembrar de todos os detalhes, pois cada detalhe seria guardado em seu coração.

Ela acordara com o telefonema de Fernando, como ele fazia sempre que estava viajando. Falaram e riram cheios de felicidade. Núria levantou-se, tomou banho e se vestiu para ir para o trabalho. Tomou o seu suco e comeu frutas e sucrilhos. Saiu apressada, porque como sempre estava atrasa. Andava pela rua e sorria, quem a visse a acharia louca. Mas ela estava louca de tanta alegria.

Seu dia no trabalho foi normal, sem nenhum incidente. No início da tarde o tempo mudou, uma forte tormenta se aproximou, o céu escureceu, ventos fortes derrubaram árvores e postes. Faltou luz, e então uma chuva pesada desabou.

Sem poder ir para casa, ela permaneceu na clínica, assim como os seus colegas, até a noite. Por fim, uma van levou os funcionários em casa.

Núria esperava que Fernando já estivesse em casa.

Ela entrou sorrindo, morrendo de saudades, só queria se aconchegar no seu abraço. O apartamento estava silencioso. Uma angustia tomou conta de seu coração. Fernando tinha o hábito de avisar quando ia se atrasar.

Núria pegou o telefone e ligou, mas a ligação não se completava, informava que o aparelho estava fora de área. Alguma coisa tinha acontecido.

Se encheu de coragem e ligou para o prefeito, o irmão mais velho de Fernando, mas este também não atendeu. Nervosa ela andava pelo apartamento sem saber o que fazer. Era madrugada, e sentindo-se cansada e com dores no ventre, Núria deitou-se e acabou dormindo.

Era muito cedo quando a campainha tocou com insistência. Núria levantou-se e caminhou até o interfone. Sentia-se tonta e sem saber qual era o dia da semana. Sua mente não conseguia entrar na realidade.

Laura chegou à porta do apartamento e viu que estava apenas encostada. Entrou e caminhou cautelosamente até o quarto, e ali encontrou a sua querida menina completamente desnorteada.

-- Minha querida, como estás? Vim-te dar apoio, nestas horas não se tem palavras consoladoras. – Disse Laura a abraçando carinhosamente.

-- Não sei do que estas falando. Acordei meia zonza, mas agora já estou bem. Fernando já devia ter chegado... Ontem me senti indisposta, com dores na barriga. Estou com medo... – Disse Núria chorando.

-- Então ainda não sabes! Ninguém te avisou? – Falou dona Laura com indignação. – Coube a mim essa penosa missão.

-- O que aconteceu? – Indagou ela com impaciência.

-- O Fernando sofreu um acidente, um grave acidente. Seu carro foi atingido por um ônibus desgovernado, na hora do temporal. O  carro dele rolou morro abaixo e ainda não o encontraram. Não se sabe se está vivo...

-- Não!!! – Gritou Núria e perdendo os sentidos.

Laura imediatamente ligou para a emergência pedindo uma ambulância. Núria foi levada para o hospital, onde ficou internada, sua gravidez estava em risco.

Núria chorava continuamente, um choro manso, mas as lágrimas escorriam e ensopavam o travesseio. O médico tentava mantê-la calma, no entanto estava difícil.

Naquela tarde o corpo do Fernando foi encontrado sem vida. As cerimonias fúnebres aconteceram e foi uma grande comoção na cidade, e Núria não esteve presente.

Uma semana depois, Núria deixou o hospital e foi para o apartamento, e Laura a acompanhou. Decida a não pedir favor para família Ruiz, ela estava separando as suas coisas para deixar o apartamento. Voltaria a morar na pensão e mais tarde alugaria um apartamento para si.

Núria ainda estava de repouso e, portanto, não tinha retomado o trabalho. E dona Laura tinha ido até a pensão para ver como as coisas estavam. Desde aquele sábado fatídico, ela permanecia ao lado de Núria, deixando a pensão a cargo de sua cozinheira, a dona Zulmira.

Passados uns dias, e uma quarta-feira de manhã dona Anete acompanhada de sua nora Paola, chegou ao apartamento do filho, com prepotência e frieza, e ordenou:

-- Esse apartamento era do meu filho, quero que saias imediatamente daqui.

Muito pálida e abatida, Núria mal conseguia ficar em pé. Mas respondeu com veemência:

-- Não quero nada de sua família. Já estou com tudo empacotado, ainda não deixei esse lugar porque devo fazer repouso, o médico ainda não me liberou. – Explicou ela segurando a barriga que já aparecia. -- Não se preocupe, logo sairei. O único membro da família que era uma pessoa de valor, Deus pegou para si. Não quero proximidade com nenhum de vocês.

Anete inspecionou o apartamento e foi embora com a mesma arrogância que chegou. Núria suspirou e fechou a porta. Deitou-se no sofá e chorou.

No dia seguinte, Mateus ligou marcando um horário. Eles precisavam conversar. Ela lembrava-se dele. Fernando gostava muito desse seu amigo de infância. Mateus era um rapaz simpático, que também, não era bem aceito pela família Ruiz.

Sentindo-se melhor, Núria pediu que dona Laura estivesse ao seu lado. Não tinha ideia do assunto que Mateus teria com ela. Mas estava com receio. O que mais de ruim poderia vir?

Na hora combinada Mateus tocou o interfone. Laura atendeu e o recebeu.

-- Boa tarde! Sente-se, a Núria já vem.

-- Como ela está? Não tem sido fácil, imagino.

-- Não! Ela esteve hospitalizada, quase perdeu o bebê. Ainda está sob cuidados médicos.

-- Pelo menos, venho trazer boas notícias. Mas não sei quais serão as consequências.

-- Mais problemas... – Disse Laura.

Núria estava entrando na sala.  Apesar de estar sentindo-se bem, ainda tinha a aparência frágil. Magra, pálida e triste.

Mateus a olhou e logo percebeu o quanto ela tinha mudado. Aquela moça bonita e jovial, não estava mais ali. Embora ainda tivesse um rosto perfeito, os olhos tinham perdido o brilho.

-- Meus sentimentos! Estou aqui para cumprir a última vontade do meu querido amigo. Preciso fazer a leitura do testamento que ele deixou. Terá que ser na presença dos pais e irmãos do Fernando, e claro, da tua também. Acho que devemos fazer essa leitura o mais breve possível. O local será no meu escritório. Quando terás alta do médico?

-- Eu me sinto melhor. Ainda não voltei a trabalhar, mas creio que ir até o teu escritório não será nenhum transtorno.

-- Podemos marcar para a próxima segunda-feira as 10h.

-- Sim. Será perfeito.

-- Obrigado pela atenção. – Disse Mateus levantando-se -- Quero que saibas que o Fernando era como um irmão para mim, e o que precisares estou a tua disposição, não só eu, mas também minha esposa, a Mirtes.

Núria o acompanhou até porta e agradeceu dizendo:

-- Obrigada. Eu sei que vocês eram bons amigos, que se queriam como irmãos. E sei, que também, estás com o coração ferido.

Na hora marcada Núria chegou ao escritório do Mateus, e a família Ruiz já estava reunida na sala onde seria feita a leitura do documento.

-- Bom dia! – Disse ao entrar na sala.

Um murmúrio foi a resposta que escutou. Sentou na cadeira indicada e aguardou. Mateus sentou na cabeceira da mesa, abriu o lacre do envelope e iniciou a leitura.

À medida que a vontade de Fernando ia sendo proclamada, a indignação se mostrava nas feições da família Ruiz. Anete a olhava para Nuria com aversão.

-- Não pode! Meu irmão não estava em sua sanidade! -- Falou Tiago, interrompendo a leitura. – Não aceito. Uma fortuna nas mãos dessa pipoqueira! Vou à justiça.

-- Por favor deixe-me terminar. – Falou Mateus. -- Mas quero adiantar que o documento tem valor e foi assinado por quatro testemunhas.

O documento declarava Núria como a sua única herdeira, e receberia todo o seu patrimônio: imóveis, joias, ações e dinheiro no banco. E que o filho que ela carregava no ventre, receberia as ações das empresas Ruiz, que somavam 15% de todos os empreendimentos, que seriam tuteladas por Mateus.

A família, furiosa e indignada, levantou e saiu sem se despedir. Mas antes todos a olharam com ódio. Núria enfrentou o olhar, mesmo sentindo o desprezo por eles, ela jamais baixaria os olhos diante deles.

Mateus combinou os procedimentos que teriam que ser feitos para passar tudo para o nome dela, com exceção das ações. Ao fim da conversa, ele a levou em casa.

                                                   ---

A vida de Núria mudou, com o filho nos braços, ela tinha tranquilidade financeira. Não precisava nem trabalhar e as suas pipocas continuavam a vender bem.

No entanto, permanecia um vazio em sua vida, uma tristeza imensa em seu coração, que nem a alegria de ser mãe superou. O menino a fazia lembrar constantemente do amor perdido, pois era parecidíssimo com o pai.

Para padrinho do filho, ela convidou o Mateus e Mirtes, que tinham se tornado seus amigos. Na pia batismal, o menino recebeu o nome do pai: Fernando Garcia Ruiz Filho.

Definitivamente, dona Laura mudou-se para o apartamento de Núria, que ainda andava muito triste a abatida. Mesmo atendendo o filho com carinho e atenção, demonstrando um imenso amor pela criança, Núria não conseguia deixar de pensar em seu eterno amado.

Os dias passavam, e aos poucos a vida ia entrando na rotina. Mesmo com o coração sangrando, ela seguia em frente, e ao contrário do que todos diziam: “Com o tempo a dor ameniza...” a sua dor não amenizava.

Fernando completara 4 anos, e Núria voltou a trabalhar. Com o filho na escolinha ela optou por meio expediente.  Um dia ao chegar à escolinha para pegar o filho, ela viu que dona Anete estava muito perto do Fernando. Assustada ela correu em direção ao filho, e o pegou pela mão.

-- Tudo bem meu amor? – Perguntou ela a criança.

-- Mãe ela disse que é minha avó. Eu tenho avó?

-- Sim, ela é a mãe do teu pai. Tu não tens avó pelo meu lado. Minha morreu quando eu era muito pequena. Mal lembro dela. – Respondeu Núria ao filho encarando a sogra.

-- Ele me faz lembrar o Fernado nesta idade. É a cópia fiel do pai. – Falou Anete em tom conciliatório. – Eu também sinto falta dele, e essa criança é um pedaço do meu filho. Quero paz, estou muito arrependida dos meus atos. Precisamos conversar. Aqui não é lugar. Tu aceitas as minhas desculpas?

-- Eu aceito conversar. Amanhã pela na cafeteria. As 9h.

-- Obrigada. Até amanhã. – Disse Anete despedindo-se do neto com um beijo na face.

Depois que a sogra se afastou ela perguntou ao filho:

-- Desde quando ela conversa contigo?

-- Não é sempre que ela vem. – Disse o pequeno Fernando. – Eu gosto da minha avó.

-- Eu sei que gostas. Por que não me contastes? Foi ela que pediu segredo?

-- Não, ela não pediu nada. Não contei porque eu esqueci.

-- Está bem vamos para casa. Mas uma coisa tu precisas aprender: Não se fala com estranhos! Já pensou que ela poderia ter te levado para longe de mim.

-- Eu não quero ficar longe de ti, mãe. Não falo mais com estranhos, eu te prometo.

-- Está prometido! E nem aceita nada de pessoas desconhecidas. Não foi isso que o teu padrinho te explicou?

-- Sim, o padrinho me disse que é perigoso.

-- Então estamos combinados.

Naquela noite, quando o Fernando já estava dormindo, Núria contou a Laura sobre o encontro que tivera com Anete.

-- Eu acho que agistes bem. Não deves semear a desavença no coração do teu filho. Um dia ele vai conhecer os fatos e então poderá julgar as tuas ações. E elas serão de paz.

-- É, tens razão. Amanhã vamos nos encontrar para conversar. Posso permitir que eles tenham relação com o neto, mas eu não quero saber dessa gente.

-- Filha, deixe o tempo correr, nesta vida nada é para sempre. As pessoas mudam... Pensa que Fernando iria ficar feliz se houvesse harmonia. Faça isso pela memória dele.

-- Tens razão e o meu filho seria mais feliz. – Disse Núria pensativa.

Na manhã seguinte, seguindo o conselho de Laura, ela foi para o encontro com sogra completamente inerme. Deixou para trás todas as magoas e apostava em uma nova relação familiar para o seu filho.

Quando ela chegou à cafeteria, dona Anete já a esperava. Com um sorriso amplo e um abraço, elas se cumprimentaram. Sentaram e conversaram sobre muitas coisas, foi uma conversa dolorida, mas necessária.

-- Eu quero apresentar o Fernandinho para a família. Todos já o viram de longe, no entanto, é preciso cultivar uma relação de proximidade. Sem o pai, esse menino, precisa de exemplo masculino. Os tios estão ansiosos para tê-lo por perto.

-- Ele tem um padrinho que o ama muito. E o ensina a ser uma pessoa de bem. Fernandinho tem em sua volta pessoas que o amam verdadeiramente.

-- Que bom! Neste sábado, como é tradição, estaremos reunidos em minha casa. Posso esperar por vocês?

-- Sim, estou disposta a proporcionar para o meu filho uma vida harmoniosa. Nós estaremos lá... – Núria tinha vontade de completar a frase com “apesar de tudo que fizeram a mim”. Mas calou-se pelo bem do futuro do filho. Engoliu em seco e levantou-se para ir embora.

As duas despediram-se com um beijo.

Sorriu ao sair da cafeteria e conjeturou...

A paz estava selada... Seria duradoura?

No fundo do coração, Núria sonhara com isso. Sempre soube que Fernando havia se distanciado de seus familiares por causa dela. E isso a incomodava. Ela tinha esperança que depois do casamento e do nascimento do filho, as coisas se ajeitassem. Mas o casamento não aconteceu e Fernando não estava mais entre eles. Agora, por seu filho, iria deixar o seu orgulho de lado e fazer o possível para que ele crescesse em meio a paz e a alegria.

A família Ruiz se esmerou para receber com carinho e atenção o novo membro. E Fernandinho era o retrato vivo do pai, deixando seu avô emocionado. Seu Felipe não conseguiu esconder as lágrimas que derramou ao abraçar o neto.

Daquele dia em diante, a convivência familiar foi se intensificando, a ponto de passarem as férias de inverno juntos. Felipe e Anete convidaram mãe e filho para um passeio a Disney. Claro que Fernandinho adorou.

Mas foi no Natal daquele ano que a relação se solidificou. Todos demonstraram a Núria, respeito e amizade. E ela sentiu-se muito grata, porque a pior data para passar sozinha com o filho era o Natal.

Naquele ano, a festa de Natal dos Ruiz foi restrita a família. Dona Laura foi convidada, já que para a Núria ela era como uma mãe. Pois, foi a velha senhora que ficou ao lado de Núria no pior momento de sua vida. E Anete reconheceu que o valor das pessoas está no seu modo de ser e agir, e não pela roupa que usa.

Foi uma festa divertida e barulhenta, e as crianças adoraram a presença do Papai Noel que chegou ao jardim de trenó.

Fernandinho estava feliz! E isso bastava para a Núria.

O tempo passava, a vida fluía, contudo a dor em seu coração não passava. Todos os dias, ela lembrava com saudades, o tempo que tiveram juntos, um tempo breve, mas intenso.

Fernando a amou de verdade, foi um amor sincero e profundo, que ela continuava sentindo por ele.

Jamais voltaria a amar da forma que amava o seu Fernando. Mesmo não tendo feito os votos diante do padre, ela permanecia fiel.

Quem sabe no futuro outro homem pudesse atrair a sua atenção...

Talvez, só talvez...

                                                      Maria Ronety Canibal

                                                           Novembro 2022

IMAGEM VIA INTERNET

sábado, 8 de outubro de 2022

CAPTURADA

                     

                  CAPTURADA

    

 

  Marcela terminou a sua palestra, despediu-se de seu anfitrião, e foi passear pelo centro da cidade. Era a sua primeira vez em Curitiba. Estava encantada com beleza da cidade. Olhava as vitrines, quando, em uma livraria, viu um livro em especial. Entrou na loja e o comprou.   

  Ao sair da livraria ela esbarrou em um homem jovem e atraente. O olhou sorrindo e desculpou-se. Ele também sorriu e a olhou com um olhar penetrante. Marcela sentiu-se despida. Virou e seguiu adiante.

  Marcela procurou um lugar sossegado para tomar um café e apreciar o movimento. Uma pequena cafeteria, em frente a praça a atraiu. Sentou-se e enquanto esperava o seu prato ser servido, pegou o livro e começou a folhear.   

    Um burburinho chamou sua atenção. Era um homem de meia idade que estava passando mal. Ela foi até ele, o examinou e pediu uma ambulância com urgência. Pegou sua bolsa e estava pronta para acompanha-lo na ambulância, quando o homem que há pouco tinha visto, se colocou a sua frente.

    -- Eu o acompanho, ele é meu amigo. – Disse o homem.

    -- Eu sou médica, Marcela Gabay, por isso, eu pensei em ir também. – Falou Marcela.

    -- Vamos juntos. Eu sou Flavio Zink Franco.

    Marcela conversou com os paramédicos, pedindo informações sobre o hospital que homem seria levado. Flavio acenou para um taxi e eles seguiram a ambulância.

    Eles ficaram em silencio, durante o trajeto. Flavio estava preocupado com o amigo. Sabia que ultimamente ele não vinha se sentindo bem, contudo, não procurou consultar um médico. Ao entrarem no hospital, eles souberam que Silvio havia sido acometido por uma sincope, e estava passando por exames para determinar as causas.

   Silvio ficou em uma enfermaria, enquanto aguardava os resultados dos exames. Marcela conversou com o plantonista que o atendeu, e soube que a razão do desmaio foi por questões cardíacas.

   Um tanto apressada, por causa do horário, Marcela comunicou ao Flavio as preocupações de seu colega. E pediu que fizesse com que o seu amigo levasse mais sério a saúde.

     -- Eu não posso esperar, tenho que ir para o aeroporto. Faço votos que o teu amigo fique bem. – Disse Marcela.

     -- Sei que o Silvio vai querer te agradecer, e se puderes me dar o número do teu telefone... – Pediu Flavio a olhando de modo especial.

    Marcela passou o seu número, despediu-se e foi para o aeroporto. Ela não tinha nem bagagem. Tinha vindo naquela madrugada para dar uma palestra sobre mortalidade infantil. Ela estava cumprindo o programa de um projeto em prol das crianças em situação de risco. Por um período de cinco anos, ela trabalhou em postos de saúde nas regiões mais periféricas da cidade de Porto Alegre, e pode avaliar o quanto as crianças careciam de cuidados na primeira infância. Hoje, ela trabalhava num dos maiores e melhores hospitais da cidade, a convite do Diretor de Pediatria, Dr. Jaime Schwarz.

     Durante o voo, ela teve tempo para pensar e avaliar o seu dia. A palestra tinha sido um sucesso. O seu passeio pela cidade, ótimo, e conhecer o Flavio...

  A imagem dele a olhando estava fixa em sua mente. Ela tinha ficado impressionada com aquele olhar. Nunca tinha se sentido tão invadida. Só que o olhar dele tinha um toque especial. E mexeu com o seu coração.

    Nunca mais o veria!

    Marcela suspirou. Melhor assim. Não tinha mais idade para sonhar.

    A sua vida estava de pernas para o ar. Ainda não tinha conseguido superar os desenganos do coração, o infortúnio de seu casamento. A morte repentina de seu pai e a mudança de sua mãe para o interior, contribuíram para que a sua vida virasse uma bagunça.

    Afastar-se de Bruno tinha sido a melhor coisa que fizera nos últimos tempos. Mas ainda estava se adequando a sua nova vida. Mudar-se para um apartamento em um bairro distante, foi a forma de evitá-lo. Não queria mais cruzar com o seu ex-marido.

   Ela havia tentado manter o casamento, fizera de tudo, suportou os fracassos financeiros sem se queixar, mas aguentar violência e traição era demais. Ele por muito tempo ainda a perseguiu, tornando a sua vida um inferno.

    Na verdade, aquele casamento havia sido um erro. Eles eram jovens demais, e foram obrigados a casar. Eles se conheciam desde a adolescência, moravam próximos. Uma gravidez mudou o rumo de suas vidas.

  Quando casaram, eles eram apaixonados, e também, muito imaturos, e brigavam por qualquer coisa. Um dia, Bruno que estava zangado, a empurrou, ela caiu, e perdeu o bebê. Marcela não o perdoou, e Bruno também não se perdoou. A vida seguiu sem motivação. Eles apenas se toleravam.

    Marcela pediu ao pai que financiasse o seu estudo. Desde criança ela tinha o desejo de ser médica, para ajudar as pessoas a se curarem de seus males. O pai atendeu ao seu pedido. E ela estudou com afinco. Queria ser livre, e com independência financeira.

   Bruno também procurou ajuda para cursar a faculdade de Engenharia Mecânica, mas a morte prematura do pai, o impediu de concluir o curso. E ele tinha uma mãe e uma irmã menor para amparar.  E precisou trabalhar como mecânico, para dar o sustento a família.

     Seu pai, era um sonhador, e investiu todo o valor da venda da casa da família, num novo projeto. Mas faliu. Matou-se, deixando a esposa e filha menor desamparadas. Bruno as acolheu em sua casa, e as relações entre ele e a esposa, que já iam mal, acabou se deteriorando com a intromissão de dona Hermínia.

      A frustação de Bruno refletiu no casamento, que ia de mal a pior.

     A solução foi a separação. No entanto, depois do divórcio homologado, Bruno não se conformava, e a culpava por tudo. Marcela sabia que o seu ex-marido não tinha a capacidade de assumir os seus próprios erros, e sempre acusava alguém para justificar os seus fracassos.

     Marcela suspirou, estava cansada de tudo isso. Ela só queria seguir em frente, trabalhar e viver em paz. Não almejava mais nada. Havia desistido do amor, da busca da felicidade.

                                                      ---

    A rotina do hospital preenchia os dias de  Marcela. Sentia-se bem, era bem-quista no seu trabalho, e dedicava-se totalmente a sua profissão. Seguidamente virava a noite fazendo plantão.

    À noite, quando deitava em sua cama, estava cansada e não pensava em nada. Queria apenas dormir. No entanto, aquele olhar cativante a perseguia nos sonhos. E muitas vezes se pegava pensando naquele homem desconhecido.

   Certo dia de sábado, ela recebeu um telefonema de um numero desconhecido, não tinha o costume de atender, mas estava distraída e aceitou a ligação:

    -- Alô... É a doutora?

    -- Sim. Quem fala?

    -- O Bruno. Estou em dívida... queria agradecer o que fez por mim em Curitiba.

    -- Como está o senhor? Procurou averiguar com mais atenção o seu coração?

    -- Sim. Recebi o seu recado. E agora estou bem. Estou voltando a minha rotina de trabalho. Procurei um especialista e cumpri todas as ordens médicas.

    -- Fico feliz em saber.

    -- O meu amigo está lhe enviando um abraço.

    -- Agradeço e retribuo a atenção. Preciso ir, estou trabalhando.

    -- Até mais doutora.

    -- Cuide-se.

                                                 -----

    Marcela andava cansada, o trabalho era intenso na pediatria.

    Por isso, ela tinha recebido dois dias de folga. Iria ver a sua mãe.

    Claudia, a sua mãe, era formada em hotelaria, e depois que o marido morreu, ela foi trabalhar em Gramado. Um grupo internacional de hotelaria, havia inaugurado recentemente um luxuoso hotel, e Claudia foi contratada.

     Embora mãe e filha se falavam seguidamente, fazia muito tempo que elas não se encontravam, e ambas estavam cheias de saudades. Claudia se atreveu a pedir um dia de folga, para acolher a filhota com total atenção. E recebeu a permissão de seu chefe, além de uma suíte gratuita para elas usufruírem do lugar.

    O hotel ficava afastado da cidade, e era um prédio magnifico em meio a uma vegetação espetacular. Marcela se encantou com o lugar. Sorriu ao pensar que sua mãe era privilegiada em trabalhar num espaço desses.

    Claudia orgulhos da filha, a apresentava aos seus colegas, procurou pelo sr. Santis e soube que ele havia saído. Marcela conheceria o seu chefe no jantar. Elas passearam pelos jardins, e conversaram. Abraçadas para matar as saudades, mãe e filha, falavam sem parar.

    Marcela escutou a mãe, que demonstrava entusiasmo por seu novo emprego, mas principalmente pelo sr. Santis. Estava curiosa para conhecer o chefe de dona Claudia.

   A tarde se foi, e elas voltaram para a suíte para se prepararem para o importante jantar que aconteceria, naquela noite. Marcela sabia que o sr. Santis partilharia a mesa com elas.

    Claudia se arrumou com requinte, estava impecável. Usava um vestido de seda, na cor vermelho rubi, num modelo simples, porém, muito bem cortado, que caia perfeitamente, mostrando que a mulher que o usava ainda tinha curvas atraentes. Marcela escolheu usar um conjunto de malha azul marinho com uma blusa branca. Também estava elegante, no entanto, não atraia olhares como a mãe.

   Ao chegar no salão de jantar, Marcela notou que não havia muita gente, todavia, os que ali estavam olharam com admiração para sua mãe. Ela sorriu ao pensar: “pobre homem, se não está, ficará fascinado por minha mãe”.

      O maitre aproximou-se delas, a conduziu a mesa reservada.

   Elas sentaram e logo foi servido uma taça de espumante. Elas brindaram sorrindo e provaram a bebida. Não demorou muito e o sr. Santis chegou.

     -- Desculpem o meu atraso... – Falou ele olhando para Marcela

     -- Silvio! – Disse Marcela. – É mesmo o sr. Silvio? Como estás? Não lembra de mim? Também estavas tão mal...

     -- Doutora, que alegria te encontrar! – Disse ele alegremente a abraçando.

     -- Vocês se conhecem, de onde? – Perguntou Claudia muito surpresa.

     -- Em Curitiba, ele teve um mal estar e eu o socorri. Já faz algum tempo.

     -- Mundo pequeno... – Comentou Silvio sorrindo. – Vamos sentar. Hoje estou acompanhado de duas belas mulheres... Está faltando o meu amigo Flavio. Ele gostaria muito de revê-la, doutora.

     -- Como ele está? – Disse Marcela um tanto admirada com o que havia escutado. Ela também gostaria muito de reencontra-lo. Mas nada disse. Apenas sorriu.

     -- O Flavio está viajando. Deve retornar ao país na semana que vem. Ele andou enfrentando algumas adversidades, mas agora está bem. – Disse Silvio.

     Marcela não deu sequência ao assunto. No entanto, ficou curiosa, mas não perguntou, seria indiscrição.

     O jantar foi agradável, Silvio era um homem educado e charmoso, e conduziu a conversa com animação, e tinha muitas coisas engraçadas para contar. Com discrição ele soube elogiar a elegância de sua mãe. Marcela pode perceber que sua mãe estava fascinada por ele, e ele? Ela não ousava dar o seu parecer.

     -- Mãe, eu preciso dar um telefonema, estava quase esquecendo. Agradeço pela sua companhia, Silvio. Boa noite.

     Marcela saiu sem dar oportunidade para protestos. Era evidente que eles precisavam estar a sós, embora fossem colegas de trabalho, não era sempre que jantariam juntos.

      Ao chegar a suíte, Marcela tirou os sapatos, vestiu a camisola e sentou-se na poltrona com o pensamento em Flavio. Ela tivera um rápido contato com ele, mas aquele olhar misterioso, ficou em sua lembrança. Gostaria de encontrá-lo novamente? Essa era uma pergunta difícil de responder. Seu coração acenava que sim, mas sua razão afirmava que não.

     Bem, logo ela voltaria a sua rotina de trabalho, e suas esferas sociais não se cruzariam jamais. Ela havia procurado na internet sobre ele, e o que viu a deixou completamente desanimada. A família Zink Franco era milionária. Flavio vivia na crônica social internacional. Era considerado a revelação no mundo dos negócios de hotelaria.

     Flavio estava fora de seu alcance.

   Pensar nele era perda de tempo. Marcela se avaliava como uma pessoa centrada e pé no chão. Não ousava sonhar com o que estava muito acima dela.

     Quando Claudia entrou na suíte, encontrou sua filha dormindo. Olhou o relógio e só então percebeu que era muito tarde. Silvio a convidara para um passeio pelo jardim, a noite estava clara, iluminada pelo belo luar. Eles tinham caminhado até o lago, e lá aconteceu algo inesperado. Silvio a beijou!

    Como uma adolescente ela não sabia o que fazer. Não sabia se o beijo foi consequência da noite envolvente, ou da atração física que havia entre eles. E agora? Como lidaria com essa nova situação? Afinal, Silvio era o seu chefe e eles estavam no ambiente de trabalho. Que enrascada se metera...

    Na manhã seguinte, ao assumir seu posto, Claudia soube que Silvio fora chamado a São Paulo. Ele tinha deixado um pequeno bilhete sobre a sua mesa, explicando a sua ausência. Deveria ficar fora cerca de três dias. Ele lamentava não poder atender a doutora, mas deixou ordens para que ela tivesse acesso gratuito a qualquer serviço do hotel. Ele sugeria o spa.

    Marcela aproveitou bem os dias de descanso. Retornou a Porto Alegre renovada e pronta para enfrentar a realidade do hospital.

     Os dias passavam...

     Assim como o relacionamento de sua mãe com o Silvio, a cada dia tornava-se mais sólido. Marcela estava feliz por sua mãe. Sabia que a vida de Claudia tinha sido difícil, seu pai tinha um gênio forte.

   Um novo médico, vindo da Espanha, foi integrado a pediatria do hospital. Gaspar Catellar era um homem simpático e de boa aparência. Não era bonito, mas era alegre e cativante. Seus olhos tinham um brilho especial. Ele foi muito bem aceito entre os membros da equipe. Gaspar era doutorado pela  universidade de Madrid, sua especialidade era câncer infantil.

     A interação entre Marcela e Gaspar foi rápida, e eles viraram companheiros de plantão. Logo tornaram-se bons amigos, constantemente eles saíram para jantar e se divertir juntos.

                                                       ---

     Natalia, uma velha amiga de Marcela, observou que Gaspar estava querendo mais do que simples amizade, e falou:

     -- Minha querida, tu não estás sendo ingênua demais? O Gaspar quer muito mais que amizade...

     -- Imagina! Ele sempre me tratou muito bem, é respeitoso e nunca insinuou nada. Estás completamente enganada. – Afirmou Marcela com segurança. – E tu bem sabes que depois de um casamento desastroso, não quero me prender novamente.

      -- E se eu estiver certa, qual será a tua reação? Eu te conheço há anos, e sei como és.... Logo verás que eu estou certa.

     -- Será? Sou tão alienada que não percebo quando um homem está afim?

     -- Eu penso que sim. Especialmente em relação ao Gaspar.

     -- Bem, vou começar a declinar alguns convites. Afinal ele é meu colega de trabalho, aliás, um bom colega.

     -- Justamente. A nossa equipe é tão unida. Não queremos mal entendidos.

     O telefone de Marcela tocou, ela viu o visor e disse a amiga:

     -- É minha mãe, dá licença. – Marcela afastou-se da amiga para conversar,

      Ela desligou o telefone e foi para a sua sala. Tinha ainda duas consultas agendadas, só depois poderia pensar em ir para casa. Normalmente ela nunca tinha pressa em deixar o hospital, mas hoje havia um motivo especial.

                                                            ---

       

    Marcela entrou no hotel e olhou em volta. Eles ainda não tinham chegado. Foi para o bar e pediu uma bebida sem álcool. Não costumava beber, só em ocasiões muito especiais, ela arriscava um brinde.

    O ambiente do bar era luxuoso, porém, sem exageros, A decoração moderna contrastava com detalhes antigos. Era muito lindo. Ela tinha decidido usar um vestido de seda verde mar, num modelo clássico. Pensou que tinha feito a escolha certa.

    Um copo bonito e colorido foi colocado a sua frente acompanhado de alguns petiscos. Marcela provou a bebida e achou deliciosa. Pegou uma castanha e distraída a mastigou.

     Um homem sentou-se próximo, sem se virar ela sentiu que ele olhava, porém manteve-se firme. Mas uma voz conhecida falou:

      -- Como vai doutora? Lembra-se de mim?

    Marcela virou-se e seu coração quase saiu pela boca. Diante dela estava o homem que ela insistia em afastar de seus pensamentos. E respondeu a ele:

      -- Olá! Como vai Flavio?

      -- Estás esperando alguém? Posso te acompanhar numa bebida?

     -- Sim... Estou esperando a minha mãe... Ai estão eles! – Disse Marcela vendo a mãe e o namorado se aproximar. – Sorriu e abraçou Claudia com carinho. – Saudades...

     Silvio fez as apresentações e Flavio declinou do convite de os acompanhar no jantar.

   -- Vou terminar minha bebida e encontro vocês na mesa. – Disse Marcela corajosamente, esperando que Flavio lhe fizesse companhia.

    -- Eu te acompanho... – Disse ele, a olhando com intensidade. —Silvio e a tua mãe, uma extraordinária coincidência.

     -- Sim... Obra do destino. – Observou Marcela.

     Silvio e Claudia se dirigiram para o restaurante, os deixando sozinhos.

     Flavio pediu uma bebida e se acomodou ao lado de Marcela.

     -- Um momento inesperado, te encontrar aqui no hotel. Fiquei muito contente em te rever. – Falou ele num tom de voz sensual, e com aquele olhar perturbador.

   -- Eu também. Pensei que nunca mais nos veríamos, já que vivemos em mundos diferentes....

    -- Mundos diferentes, no entanto, não intransponíveis. Vou ficar uns dias por aqui, temos chances de jantarmos juntos?

   -- A princípio sim. Só amanhã vou saber qual é a escala de plantão dos próximos dias.

      O telefone dele deu um toque de alerta. Ele levantou-se,

     -- Eu te ligo. Preciso ir... Peço que me desculpe, sair assim apressado... – Disse ele a beijando no rosto. – Até mais.

       -- Tchau.

      Marcela bebeu mais gole de sua bebida e foi para o restaurante encontrar sua mãe.

                                                      ---

    O jantar foi agradável, e Marcela constatou que sua mãe estava feliz e que Silvio a tratava como uma princesa. Isso era bom, pensou ela.

     O licor estava sendo servido, quando Claudia falou:

     -- Filha, preciso te comunicar a minha decisão.

   -- Aceitou a transferência. Vamos ficar mais distantes uma da outra. – Reclamou Marcela com seriedade.

     -- Mais ou menos isso. Vamos nos casar e o Silvio aceitou ir para o novo resort nas termas uruguaias.

    -- Hum.. Mãe, tu sabes o que é melhor para ti. Se vocês querem arriscar um compromisso sério, como o casamento, vão em frente. Só quero a tua felicidade, a felicidade de vocês. Ainda estaremos ao sul da América do Sul.

     -- É um lugar maravilhoso, e terás férias gratuitas, isso eu te garanto. – Disse Silvio animado.

    -- É um alento. – Disse Marcela rindo. – Parabéns aos noivos. Quando será o casamento. Preciso me programar, e onde será?

   -- Casaremos em Canela e faremos uma pequena recepção no hotel. Coisa simples, apenas para os amigos mais íntimos. – Explicou Silvio com entusiasmo.

    -- Quero que sejas a minha madrinha, minha querida. – Completou Claudia.

    -- Mas é claro que serei... E quando será? – Insistiu Marcela.

    -- No dia 25. – Silvio respondeu.

    -- Dia 25 agora? Daqui a três  semanas?

    -- Exatamente. Tivemos pouco tempo para resolver tudo. Em um mês preciso assumir o cargo. E nós vamos passar a nossa lua-de-mel em Portugal. – Explanou Silvio.

    -- Maravilha! Bem está tarde. Amanhã as 6h eu tenho que estar no hospital. Teremos uma cirurgia delicada, em uma menina de apenas 4 anos. Obrigada pelo jantar e pelas belas novidades. – Disse Marcela despedindo-se do casal.

                                                      ---

   Após a deixar a sala de cirurgia, Marcela foi para seu consultório. Precisava descansar um pouco e tomar um Café para enfrentar o dia de trabalho. Foi ao seu banheiro individual e refrescou-se, trocou de roupa e refez a leve maquiagem que sempre usava. Ela gostava de estar sempre com boa aparência. Não importava a quão triste ou cansada ela estava, os seus pacientes mereciam.

   Sentou-se em sua mesa e abriu a sua agenda, quando sua secretaria entrou com um bonito buque de flores.

   -- Olha o que chegou para doutora, agora mesmo. Que lindos. São amores-perfeitos.

    -- Bonitos mesmo. – Disse Marcela pegando as flores. – Elas estão plantadas, veio um vaso. Aqui tem um cartão.

    -- Um admirador, doutora. – Disse Monica saindo da sala.

     Depois de admirar o colorido das flores, Marcela pegou o envelope e retirou o cartão.

     “Para a doutora, nada menos do que um amor-perfeito. Flavio”

    Marcela sorriu. Arrumou um lugar em sua mesa, mais perto da janela e ali colocou as belas flores. Avisou a Monica que mandasse entrar o primeiro paciente.

    Era quase fim da tarde quando Gaspar entrou no consultório de Marcela, muito sério, ele mal a cumprimentou e a indagou:

    -- São essas as flores que recebestes? A novidade correu por todo o setor.

    -- Sim, são essas! Uma pergunta, te devo satisfação de minha vida?

   -- Não entendi o que estas insinuando. Sim, somos comprometidos. Quantas vezes saímos juntos, e aqui no hospital todos sabem que somos mais que amigos. Ainda não estamos noivos, mas compromissados, sim.

    -- Não acredito! Isso não está acontecendo. Era só o que me faltava... – Disse Marcela furiosa. – Fique sabendo que não há nada entre mim e ti. Nenhum tipo de relação, a não ser a de colegas de trabalho. Entendido?

     Gaspar não respondeu, levantou-se saiu da sala.

    Marcela suspirou. Olhou para as flores e sorriu. Ela ousaria burlar a sua própria regra, apenas com o Flavio. Esse cara era demais!

   Lembrou-se do aviso de sua boa amiga, Natalia. Ela era uma observadora nata, não deixava escapar nada. Teria que contar para ela o que havia sucedido.

                                                       ---

     Marcela saia do banho, quando o telefone tocou. Olhou visor e sorriu.

     -- Alô!

     -- A doutora está no seu horário de folga?

     -- Sim... – Disse ela rindo. – Estou em casa, de pijama, pronta para repousar.

     -- Oh! Estou atrapalhando?

   -- Não! Obrigada pelas flores. São lindas! Adoro amor perfeito. Como descobriu?

     -- Como eu já citei, para a mulher perfeita, só um amor perfeito.

     -- Obrigada! Sinto-me lisonjeada.

     -- Podemos marcar o jantar para a próxima sexta feira?

     -- Sim. Meu plantão é na quarta-feira.

   -- Me manda o endereço por mensagem. Te pego as 21h. Bom descanso, doutora.

     -- Boa noite, Flavio.

     Marcela desligou o telefone, e como uma adolescente atirou-se na cama rindo. Estava feliz... muito feliz!

     Foram dois longos dias. Enfim era sexta-feira.  

    Marcela tinha comprado um vestido naquela manhã, pois suas roupas eram tão ultrapassadas. Escolheu um vestido na cor rosa cha.. Um modelo simples, mas de corte perfeito. A cor tinha assentado muito bem, segundo a vendedora. Iria acreditar!

    As nove horas em ponto, o telefone tocou, anunciando que Flavio a esperava no saguão do prédio. Ela deu um tempinho, embora já estivesse pronta. Não queria demonstrar o quanto estava feliz...

     Quando ela saiu do elevador, ele a olhou de cima a baixo, nada disse, mas deu uma piscadela, que ela entendeu como aprovação. O porteiro correu para abrir a porta, e sorriu para ela de modo animador. Confiante ela entrou no carro.

    Enquanto se dirigiam para o restaurante, Flavio nada disse, no entanto a olhava com intensidade. Marcela ficava abalada com aquele olhar. O homem falava pelos olhos! Naqueles olhos ela via admiração, simpatia e encantamento. Ao menos era assim que ela interpretava.

    O jantar foi delicioso, eles conversaram sobre as viagens dele, seu trabalho e a vontade de voltar a uma rotina mais caseira.

    -- Sei que deves estar achando que o meu trabalho é fascinante... Me leva para diferentes lugares e oportuniza conhecer muitas pessoas. Sim, isso é bom. Mas estou cansado. Eu não tenho uma casa para voltar. Entende. Eu moro nos hotéis.

    -- Eu te entendo perfeitamente. Eu sou muito rotineira e caseira. Eu gosto do meu cantinho, como eu digo. Gosto do meu trabalho, do ambiente do hospital, até das agitações num momento de emergência. Faz parte do trabalho.

   -- Nossas vidas são completamente diferentes. Consegui ajeitar para ficar até o casamento do Silvio. Depois retorno a minha vida de nômade.

    -- Então vens pouco ao sul...

  -- Sim... Estou programando um novo roteiro. Espero que seja aprovado. Trabalhar com a família não é fácil.

    -- Acredito...

    -- Esse tom de rosa te assentou muito bom. Estás muito bonita, posso até dizer, fascinante.

      -- Obrigada. – Disse Marcela sentindo as faces quentes.

    Flavio percebeu e sorriu. Esticou o braço e pegou por cima da mesa a mão dela e afagou com carinho. Seu olhar, agora era puro desejo.

    Eles passaram a sair com frequência, assim, como as flores se tornaram diárias. No hospital todos sabiam que as flores espalhadas pelo saguão principal, eram de Marcela.

      Apenas Gaspar não se divertia com o namoro da doutora Marcela. Ele estava tão contrariado que solicitou a sua transferência para outro setor. Mas, é claro que não foi concedida.

    Marcela estava temerosa. Não conhecia o homem e não imaginava qual poderia a ser a sua loucura, ou a paixão que tinha por ela. Natalia também estava preocupada, porque Gaspar não estava de brincadeira, ele falava com muita seriedade. O bom foi que elas conseguiram alterar as escalas de plantão, e agora as duas ficavam juntas. Isso foi um alivio.

    Era a semana do casamento de Claudia, e Marcela estava agitada. As horas corriam e ela tinha tantas coisas para organizar. Flavio a tinha convidado para ficarem juntos até o fim de semana, antes de ele ir viajar. Ela havia aceitado. Seria quase uma lua de mel. Eles ainda não tinham se envolvido sexualmente. Alguns beijos, apenas.

     Marcela estava empolgada.

    Não era do seu jeito ser tão espontânea, normalmente ela decidia o rumo de sua vida, após muito pensar. Mas desta vez era tudo diferente. Na verdade, ela estava fascinada por Flavio, e o desejara desde o primeiro momento.

    Ela tinha conseguido uns dias de folga, queria estar com a mãe, um tempo antes do casamento. Sentia necessidade do afeto materno, embora sua vida amorosa estivesse bem.

     Flavio só poderia vir para o casamento. Alguns telefonemas fizeram com que ele ficasse retido na capital gaúcha. Coisas do trabalho, explicou ele, para a sua namorada, Marcela.

    O dia casamento amanheceu com um sol esplendido. O cerimonia seria ao ar livre, para poucos amigos. Eram 11h quando Claudia, acompanhada da filha, caminhou vagorosamente até a pérgula onde se realizaria o oficio.

    Claudia vestia um vestido rosa hortênsia e levava na mão um buque de violetas. A noiva exalava felicidade.

    Ao lado da mãe, caminhava Marcela, usando um vestido plissado na tonalidade azul bebê. Ela sorria e seus olhos brilhavam, enquanto miravam o homem que o seu lado seria também padrinho dos noivos. Flavio, retribuía o olhar, e a admirava. Em seu íntimo, reconheceu que estava apaixonado. Essa mulher o havia capturado.

    O almoço comemorativo foi alegre. Muitos brindes e alguns discursos foram dirigidos ao casal de noivos. Era cedo, quando os noivos fugiram da festa. Os convidados começaram a retirar-se. Marcela e Flavio estavam se despedindo dos últimos convidados, quando o telefone dele tocou.

   Flavio pediu licença e foi atender a ligação, que foi longa. Ele retornou contrariado e disse a Marcela:

     -- Nossos planos ruíram. Um sério problema de família surgiu. Terei que ir a São Paulo. Mas tu ficas, a suíte está reservada, aproveita esses dias e descansa.

     -- O que aconteceu? Alguém morreu?

     -- Seria mais fácil se fosse caso de morte. Preciso ir. – Disse ele a beijando na face e afastando-se apressadamente.

    Muito triste, Marcela foi para a suíte luxuosa. Olhou em volta e sentiu-se abandonada; completamente só. Deitou-se e chorou.

   Dias depois, uma linda caixa de bombons suíços foi entregue em seu apartamento. No cartão um pedido de desculpas, mas nenhuma explicação. Marcela decidiu esquecer esse estranho romance. Já tinha sofrido muito por amor. E justamente, pelo mau comportamento masculino, que ela escolheu seguir  sozinha.

       Porém, Flavio a tinha capturado com aquele olhar...

   As flores cessaram de aparecer no hospital. Marcela tentava agir com normalidade, mas seu coração estava partido e seus olhos tristes. Ninguém se atrevia a perguntar a razão dessa tristeza. Nem mesmo, Natalia, a sua boa amiga, falava a respeito.

    Gaspar era o único que vibrava com o desengano de Marcela. Ele tornou a se aproximar dela, usando de artimanhas para virar o plantão ao lado dela. Natalia estava de férias, o que facilitou para Gaspar.

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    Flavio sabia que estava devendo uma explicação para Marcela. No entanto não era assunto para ser falado por telefone. Ele realmente estava interessado em seguir em frente ao lado de Marcela. Ela era uma mulher excepcional, e sinceridade era primordial para uma relação ser duradoura. Ele iria revelar o segredo que havia em sua vida.

   Depois de ficar uns dias em São Paulo, ele precisou seguir a sua rotina de trabalho, um substituto estava sendo treinado. Ainda ficaria um tempo distante de Marcela. Ele continuava ligando, insistentemente, mas ela não retornava as suas ligações.

    Flavio reconhecia que ela deveria estar furiosa. Já conhecendo o temperamento explosivo dela, sabia que seria uma tarefa árdua, reconquistá-la. Ele não iria desistir, Marcela valia ouro.

    Após cumprir seu itinerário, Flavio voltou para São Paulo. Antes de ir para o sul, era preciso acomodar a situação que se criara. Janaina era uma pessoa inconsequente...

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     Era sexta-feira, fim de tarde quando Flavio chegou em Porto Alegre. Ele tomou um taxi e foi direto para o apartamento de Marcela. Ele tinha urgência em vê-la, só esperava que ela não estivesse de plantão.

     Flavio saiu do elevador e caminhou pelo corredor e parou diante da porta do apartamento 502. Sentia-se nervoso como um adolescente, estava apaixonado por ela, ou melhor, ele a amava!

     Tocou a campainha e esperou. A porta se abriu e diante dele estava a imagem sedutora dela, vestida com simplicidade e cabelos ainda molhados.

     -- Olá. Precisamos conversar. – Disse ele sorrindo.

     -- Oi. Entre... – Disse ela, afastando-se para ele passar. Ela fechou a porta e o seguiu até a pequena sala. – Sente-se. Quer beber alguma coisa?

     -- Aceito uma água. Estou chegando agora. Vim do aeroporto para cá. – Disse Flavio. – Obrigado. Sei que estás magoada comigo, mas estou aqui para te explicar o que aconteceu. Aliás, a minha vida foi virada do avesso. — Continuou ele.

     -- Não estás sendo dramático demais? – Indagou Marcela com sarcasmo.

     -- Vou te contar e então tu decides se estou exagerando, ou não. – Ponderou ele a olhando.

     -- Desculpe-me. – Falou Marcela encabulada.

    -- Tudo bem. Aquele telefonema que recebi, naquele dia, me abalou.  Uma reviravolta em minha vida, que era tão organizada e rotineira. Uma filha que eu não sabia que tinha. Uma criança, doente, precisando de mim.

     --   Uma filha? E doente?

  -- Sim, e doença grave. Algo neuro degenerativo: Distrofia Muscular de Duchenne. E numa menina de apenas cinco anos. Isso me comoveu e eu mudei a minha vida, para acolher a Marina com amor e carinho. Afinal ela é minha filha...

    -- A mãe dela era tua namorada? – Perguntou Marcela.

    -- Não. Foi um encontro fortuito. E eu devia estar muito bêbado, já que não me lembro e não me precavi, coisa que sempre fiz, justamente para evitar esse tipo de situação. Tanto que inicialmente me recusei a aceitar, e fiz testes em diferentes lugares e ambos confirmaram, que realmente eu sou o pai da menina. Janaina, a mãe, é uma pessoa sem caráter e irresponsável. Marina estava entregue a mulher, a qual ela pagava para criar a criança. Mas quando os sinais da doença começaram aparecer, a mulher não quis mais cuidar. Então a Janaina assumiu o seu papel de mãe, mas por pouco tempo, já que ela não pode mais participar das orgias. Sim, porque a mãe da minha filha, é uma prostituta de luxo.

     -- E a Marina aonde está?

  -- Agora está sob a minha guarda. A primeira providência foi buscar judicialmente a guarda de menina. Contratei uma enfermeira para cuidá-la. E provisoriamente, elas estão morando num dos nossos hotéis em São Paulo. No entanto, eu resolvi vir morar  no sul. Quero me estabelecer aqui em Porto Alegre. E conto contigo para me indicar um especialista para acompanhar o tratamento da Marina. Sei que a perspectiva de vida dela é limitada, e por isso mesmo quero que tenha todo o conforto, atenção e amor.

   -- Conta comigo para o que precisar. Estas pensando em casa ou apartamento?

    -- Quero uma casa, com um pequeno jardim para que Marina possa estar em meio a natureza, que sempre é mais agradável do que estar entre quatro paredes. Não precisa ser grande, quero apenas que seja confortável e que preencha os requisitos indispensáveis para o conforto da menina.

      -- Vamos encontrar... Estás com fome? Que tal uma massa?

      -- Que tal uma pizza?

      -- Acompanhada de um vinho...

      -- Sim, um vinho. Agora já estou aliviado do peso que estava carregando. Um pouco de vinho vai ajudar eu relaxar. Eu estava ansioso para falar contigo. Me desentendi com a minha família, mas isso não é novidade. Eu não me enquadro com eles... Eles não aceitaram a Marinha como membro da família. Imagina se dona Paula e seu Davi vão aceitar uma criança doente e filha de uma prostituta na família?

       -- Verdade? Mas a criança não tem culpa.

       -- Justamente. Estou saindo da empresa. Tivemos um acerto inicial, e vou ficar com os hotéis daqui do sul, incluindo as termas uruguaias. A diferença vou receber em dinheiro. Então poderei investir e expandir os hotéis, ou aplicar em outra atividade. Ainda não pensei sobre essa questão. Teremos tempo para decidir.

         A noite seguiu. Eles conversaram, comeram e beberam o vinho...

         E se amaram com paixão...

                                                        ---

        Um mês depois, Marina acompanhada por sua enfermeira Veronica, chegava à casa do pai, onde um ambiente alegre, confortável e acolhedor a esperava. Marcela ajudou a estabelecer uma rotina saudável a menina, que estava cercada de cuidados, atenção e amor, não só do pai, como também de Marcela.

      Marcela providenciou para Marina fosse logo levada ao dr. Alfeu Zângano, para iniciar o tratamento.

        Os dias passavam...

    A relação entre Flavio e Marcela firmou. Os cuidados com a menina os aproximou, e Marcela estava feliz por poder dar a Marina todo o amor maternal que sempre reprimiu. O aborto que sofreu a traumatizou, e nunca mais pensou em gerar um filho. Mas agora tinha Marina e ela colocou nessa relação todo sentimento maternal que guardava no coração.

        Era uma manhã de sábado, e Marcela levou Marina para um banho de sol no jardim. Acomodou confortavelmente a menina e sentou-se bem próximo. Nas mãos ela tinha livro de história infantil, que lia. Em voz alta, e Marina por sua vez, prestava atenção em tudo o que Marcela dizia.

       Flavio estava parado próximo e apreciava a linda cena que se desenrolava a sua frente. Ali parado, olhando as duas interagirem, Flavio tomou uma decisão, talvez a mais importante de sua vida.

     Manteve-se quieto até o fim da história, e aproximou-se quando filha feliz batia palmas. Cansada a menina logo dormiu. Ele sentou-se no banco junto de Marcela, a abraçou e sussurrou ao seu ouvido:

      -- Aceitas casar comigo?

      -- Casar? Precisamos mesmo casar? Assim não estamos bem?

      -- Sim! Somos felizes... O que acontece que eu sempre sonhei em casar com a mulher amada, com a mulher mais importante da minha vida. Aceitas?

      -- Eu já fui capturada...

      -- Isso é um sim?

      -- Claro que é um sim...

                                                                  Maria Ronety Canibal

                                                                       Outubro 2022

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