Lembranças...
A fotografia
de uma casa antiga, na internet, despertou a atenção a Marilda. Ela conhecia
muito bem aquela casa, conviveu com os moradores, e com a tragédia que se
abateu sobre suas vidas.
Imediatamente, as lembranças
de um passado feliz, vieram a sua mente, um tempo distante, que não volta mais.
Lágrimas surgiram e escorreram por suas faces.
-- O que está acontecendo?
-- Perguntou Rosane, sua amiga. – Por que estás chorando?
-- Essa foto... – Disse
Marilda mostrando a tela do computador. – Me fez lembrar um velho amigo, o
Leopoldo Chemisch. O Leo, como o chamávamos. Ele morava nesta casa...
-- Queres me contar? Parece
ser uma história interessante... – Afirmou Rosane.
-- Sim. Mas, primeiro deixe-me
me recompor... – Pediu Marilda Glasmam, secando
as faces.
-- Eu vou fazer um cházinho
enquanto isso. – Falou Rosane levantando-se e indo em direção a cozinha.
Marilda e Rosane eram amigas
de longa data, eram professoras, haviam trabalhado na mesma escola. E hoje
aposentadas, dividiam um apartamento, no bairro São João, em Porto Alegre.
Marilda ficou órfã muito
cedo, não tinha irmãos e era solteira; e Rosane era viúva, não tinha filhos e
seus irmãos moravam em Tiradentes do Sul. Sendo assim, elas decidiram cuidar-se
mutuamente, afinal, estavam ficando velhas.
-- Aqui está, um chá de
camomila, vai te acalmar. E sou toda ouvidos... – Disse Rosane acomodando-se na
poltrona perto da janela.
Depois de alguns goles de
chá, Marilda se animou a contar a sua história de amor.
Eu era muito jovem quando
meus pais se acidentaram e morreram. O sr. Walter, pai do Leo, era um bom amigo
do meu pai. Dona Erna tornou-se uma grande amiga de minha mãe. Eram como irmãs.
Os casais frequentemente se visitavam, e eu desde pequena adorava o Leo. Ele
era um pouco mais velho do que eu, e também filho único, pois a Ana, sua
irmãzinha morreu ainda bebe. Não chegou a completar dois anos.
Quando nos encontrávamos ele
sempre me tratava bem, cuidava de mim, me protegia. No princípio eu achava que
ele via em mim a sua saudosa irmã. Éramos ainda crianças.
Mas, o tempo passou,
crescemos, e eu fui percebendo que ele se interessava por mim. Me lançava
olhares e sorrisos, me levava para passear, às vezes me dava um presentinho. Eu
adorava toda essa atenção. Pois eu gostava muito dele.
Eu tinha 16 anos e ele 19,
quando afinal, começamos a namorar. Nossos pais ficaram contentes. Era tudo o
que eles queriam.
Após aquela tarde chuvosa
fatídica, em que perdi meus pais, eu fiquei desorientada, sem saber o que
fazer. Não tinha mais ninguém no mundo.
Meus pais eram alemães, eram
recém casados quando decidiram fugir da guerra, que se alastrava na Europa. Eles
vieram direto para o sul do Brasil, e se estabeleceram aqui na capital. Eu
nasci eles já estavam estabelecidos aqui
em Porto Alegre.
Meu pai era químico e
vidreiro, e foi trabalhar com o sr. Walter, que tinha uma fábrica de artefatos
de vidros. E assim nasceu a amizade entre as famílias. Laços fortes que faziam
as famílias da mesma origem e religião, se unirem e ajudarem-se mutuamente.
E foi o que aconteceu.
A morte prematura de meus
pais, fez com que dona Erna me acolhesse em sua casa, ela era uma pessoa
maravilhosa... Passei a viver com aquela família.
Como estávamos
comprometidos, o seu Walter sugeriu que apressássemos o casamento. Porque era
um tanto constrangedor a noiva viver na mesma casa do noivo. “Os vizinhos vão falar.”
Dizia ele.
Leo acatou a vontade do pai
e colocamos as alianças de noivado, e logo marcamos a data do casamento. Seria
no início de julho, no período das férias escolares. Assim poderíamos sair em
lua de mel. Iriamos para Caxias do Sul.
Eu ainda estudava, tinha
apenas 18 anos, todavia estava feliz, muito feliz. Enfim eu realizaria o meu
grande sonho. Casar com o Leo sempre foi a minha fantasia.
Tudo estava correndo bem.
Até que naquela tarde quente
de fevereiro, algo explodiu na fábrica, e o Leo foi atingido no rosto,
sobretudo nos olhos. Perdeu a visão!
Seus olhos foram feridos com
vidro incandescente. Foi horrível! Não gosto nem de lembrar... Ele urrava de
dor... Coitado! Ninguém merece uma coisa assim.
Ele que sempre foi um rapaz
honesto e sincero, ser castigado dessa forma... Eu fiquei revoltada. Até hoje
sou.
Então tudo mudou...
Todos nós entramos em
pânico!
A curiosidade era saber como
o Leo reagiria?
Eu o amava tanto, que não me
importava com a cicatriz feia que ficaria, tão pouco com a falta de visão. Eu
estava pronta para dedicar a minha vida a ele.
Sabia o quão difícil devia
ser. Ele que sempre foi uma pessoa ativa, alegre, observadora, apreciador de
uma boa leitura... De repente ficar na escuridão!
Era evidente que ele não
seria mais o mesmo.
Assim como eu, ele também não
aceitava a situação. Estava inconformado e revoltado com a vida. Sentia-se
punido por algo que não fez.
Até hoje me dói o coração, quando
penso nisto.
Os primeiros dias ele tinha
bandagens e precisou ficar em repouso. E eu passei a sentar em seu quarto,
tentando fazer companhia.
Ele estava quieto, calado e
não reagia a nada. Por fim desisti de falar. Apenas ficava ao seu lado,
tentando perceber todas as suas necessidades momentâneas.
Quando os curativos foram
retirados, pude ver a horrorosa cicatriz que ficou. Seu Walter logo
providenciou um par de óculos escuros, para evitar que as pessoas vissem
aqueles olhos mutilados.
Tentávamos agir com
naturalidade.
Como os demais, passei a ajudá-lo
a se locomover dentro de casa. Ele estava rebelde, não queria ajuda, saia se
batendo e tropeçando, xingando a si mesmo.
Seu Walter o ajudava,
sobretudo na hora do banho. Ficava com ele no banheiro, entregava-lhe a toalha
e as roupas na ordem de vestir.
Era dona Erna quem servia o
seu prato, e agia como se ele fosse uma criança, com a comida toda picada e lhe
entregava uma colher. Ela fazia tudo por ele, entregava tudo na mão dele.
E a mim, coube assistir.
Não tínhamos mais momentos
nossos... Nem um carinho ou um beijinho trocávamos; não saiamos mais para
nossos passeios de mãos dadas, pelas calçadas do bairro. Ele estava se
distanciando de mim.
Eu estava desesperada. Pois
eu o amava profundamente e sabia que era muito amada. Mas a tragédia que se
abateu sobre as nossas vidas, foi muito intensa, e fez tudo mudar.
O tempo passava, a adaptação
dele não progredia, pois, seus pais não lhes davam oportunidade de assumir o
controle de seus atos. Tudo eles faziam e decidiam por ele, como se o Leo
tivesse ficado sem condições de raciocinar.
O Leo não era mais a mesma
pessoa!
A alegria e otimismo que regia
a sua vida, não mais existia. Tornou-se sombrio e triste. E parte dessa
tristeza era causada pela decisão que ele havia tomado.
Eu sei, porque ele mesmo me
falou.
Uma tarde de outono, nós
sentamos no banco que ficava nos fundos, em baixo de um pequeno caramanchão. Eu
muito entusiasmada, comecei a falar sobre o nosso casamento que estava se
aproximando.
Ele me deixou falar. E
quando eu me calei, ele pegou a minha mão, a beijou e disse-me. “Eu te amo mais
do que tudo. Quero a tua felicidade... Te desejo um futuro brilhante... No
entanto, eu não posso me casar contigo. Não nessa condição. A minha cegueira
não tem cura, não vou mais voltar enxergar. Não quero ser um estorvo em tua
vida. Tu és jovem, bonita, inteligente e logo estarás cansada de ter como
marido um homem mutilado. Um homem inútil, o qual deverás conduzir pelo resto
da vida. Não! Tu mereces uma vida melhor...
Tu mereces um homem que
aprecia a tua beleza, o teu sorriso encantador, que perceba no brilho do teu
olhar o estado de tua alma. Sim, porque és transparente... Eu não posso mais
ver-te...
Fiquei espantada!
Eu não estava acreditando,
aquela conversa não estava acontecendo... Me belisquei para saber se era um
pesadelo. Mas infelizmente era verdade.
Eu pedi, implorei para que
nos déssemos a chance de ser feliz. Foi inútil. Leopoldo foi implacável! Não levou em
consideração os meus argumentos... Ele já havia decido...
Sentindo-me humilhada e
rejeitada, naquela mesma tarde arrumei as minhas coisas e sai daquela casa,
para nunca mais voltar!
Marilda calou-se...
Rosane respeitou o silencio.
Observava a amiga. Ela tinha ficado muito abatida. Era melhor encerrar a
conversa. Outra hora indagaria sobre o que aconteceu depois que ela deixou a
casa.
---
A saída brusca de Marilda, abalou
Leopoldo profundamente.
Ele havia pensado muito
sobre o assunto. Depois do acidente, sua mãe, passou a implicar com a sua
noiva. Não permitia que ela se aproximasse dele, que o ajudasse... Que fosse a
sua noiva...
E ele sentia falta do toque
suave de Marilda.
Seu pai ao contrário, estava
animado com o casamento deles, e afirmava que assim ele teria alguém por ele, para
o resto da vida, já que os pais não eram eternos. Só sugeriu que eles ficassem
morando ali.
Leopoldo começou a imaginar
como seria o seu casamento... Não daria certo! Com a sua mãe interferindo a
todo instante. Ele queria a felicidade de Marilda e não a aprisionar em um casamento
infeliz.
Ele seria um fardo pesado a
ser carregado.
Uma tristeza se abateu em
seu coração.
Os dias passavam, a data
estabelecida se aproximava, uma decisão era imperativa. E assim ele fez a sua
escolha. Conversar com Marilda seria uma tarefa árdua. E ele se preparou para
enfrentá-la.
Escutar a voz embargada
dela, o desespero dela pedindo, não, implorando para que continuassem juntos,
foi dolorido. A sua vontade era abraçá-la e ficar para sempre unido a sua
querida noiva.
Mas ele não podia exigir
dela um sacrifício de vida, e uma aflição tão grande. Com o coração partido,
ele se manteve firme, e não cedeu aos apelos de Marilda.
Um vazio ficou ao seu lado,
quando ela chorando levantou-se e afastou-se dele. O deixando sentado sozinho
no meio do pátio.
E para a sua tortura, ela
tinha ido embora.
Fugiu dele!
Nem um adeus ele ouviu...
Ele não imaginou que a
reação de Marilda fosse tão radical. Sabendo que ela não tinha para onde ir, imaginou
que ela ainda permaneceria alguns dias ali.
Uma angustia tomou conta
dele. Entrou em desespero. Aonde ela estaria? Ela não tinha ninguém... E
começou se questionar se tinha agido certo?
Eles se amavam
profundamente, desde a adolescência. Ele nunca pensou em outra garota. Marilda
sempre esteve em seus pensamentos... Tinha cuidados para com ela. Adorava
aquele seu jeito alegre e matreiro. Apreciava a sua inteligência e a queria
sempre a seu lado. Fez muitos planos, eles tinham um projeto de vida feliz.
Mas o inesperado fez uma
surpresa...
A vida lhe deu uma
rasteira...
E agora além da escuridão,
havia em sua vida uma tristeza infinita.
Leopoldo muito angustiado
pediu ao pai que descobrisse aonde ela estava morando. Seria mais fácil imaginá-la
em um lugar, e não solta no mundo.
Não demorou para seu Walter
saber que ela havia alugado um quarto, na casa de dona Ilse Scheneider. Pai e filho
ficaram sossegados, ela havia escolhido viver em uma casa de gente decente, não
muito distante dali.
Dona Erna, a rotulou como
mal agradecida, ora viver e conviver com eles tanto tempo, e depois sair sem ao
menos deixar um bilhete... E decidiu que não pronunciaria mais o nome da moça.
Achava que essa era forma de ajudar o filho a esquecer, aquela ingrata.
Leopoldo havia comprado um
apartamento para eles morarem depois de casados. Muito preocupado com o futuro
de Marilda, ele pediu ao pai que transferisse o imóvel para ela. Como desculpa
poderia alegar ser pagamento da parte do pai dela na empresa. Pois se ela
soubesse que era presente dele, talvez ela não aceitasse. E ele queria garantir,
ao menos, um teto para ela viver.
Ele sabia que algum dinheiro
ela tinha. Pela morte dos pais ela recebeu as economias do casal, que estavam
em uma conta de Caixa Econômica Federal.
Depois de tudo feito, Leopoldo
acalmou um pouco a sua consciência. Mas o vazio em sua vida só aumentava, a
saudade que sentia do som da voz, da risada dela, dor calor de sua pele, estavam
o enlouquecendo.
Ela permanecia em seu
pensamento, em seu coração, em sua alma. A aliança de compromisso, que ela
havia colocado em dedo continuava ali. E ele não sabia mais o que fazer. A noite
recolhido ao seu quarto, ele chorava pelo amor desperdiçado...
---
Nós gostávamos das mesmas
coisas, das mesmas sensações... – Disse Marilda, de repente, tocando a corrente
que usava sempre, com a sua aliança de noivado. -– Sair a passear na chuva era
uma dessas coisas. Uma vez, estávamos na praça que ficava próxima a nossa casa,
quando começou a chover, em vez de voltarmos para casa, nós sentamos no banco e
abrimos a minha sombrinha. Foi engraçado. Nós riamos felizes...
-- E depois que saístes de
lá, o que aconteceu? – Quis saber Rosane.
-- Bem eu fui pedir morada
na casa da dona Ilse, eu sabia que ela estava querendo alugar o quarto da
filha, que recém havia casado. Ela era viúva, costureira e não queria ficar só.
Ela me aceitou na hora... Fiquei morando ali um bom tempo. Até que um dia, seu
Walter apareceu e me ofereceu este apartamento como pagamento pela parte do meu
pai na fábrica. Eu aceitei. Pensei que se era referente a parte de meu pai na
sociedade, eu um direito meu, aceitar. Ele me entregou parcialmente mobiliado. Tinha
o essencial. Quando vim morar aqui eu já estava fazendo o estágio. Logo
consegui uma colocação aqui no São João. E foi onde trabalhei toda a minha
vida. Sou grata ao seu Walter. Sempre tive um teto.
-- Nunca mais soubestes do
Leo? – Perguntou Rosane muito interessada em saber o que aconteceu com o pobre
rapaz.
-- Sempre que eu ia visitar
a dona Ilse, ela me falava. Sim, pois ali na vizinhança todos tinham muita
consideração pelo Leo, ele era muito querido, e todos ficaram consternados com
o acidente. Assim, que os vizinhos não faziam fofoca, apenas contavam uns aos
outros o que sabiam. O primeiro a morrer foi o seu Walter. Ver o filho naquele
lamentável estado, o abateu profundamente. Ele vendeu a fábrica... E um dia
simplesmente não acordou. Já dona Erna viveu mais um tempo. Um problema de
pulmão a consumiu. E o em menos de dez anos o Leo estava só no mundo. Depois da
morte a mãe, os vizinhos passaram a cuidar dele. Faziam as compras, cozinhavam,
limpavam a casa, e conversavam com ele. Segundo sei ele melhorou, não estava
mais tão depressivo. Porém um dia ele tentou se matar... Então um primo
distante o levou para o interior. E eu nunca mais soube dele.
-- E depois da morte da mãe
dele, não pensastes em procura-lo? – Indagou Rosane.
-- Pensei... Pensei muitas
vezes... No entanto, eu tinha medo de ser novamente rejeitada. E isso eu não
suportaria. E dizia a mim mesma. E porque ele não vem até mim? Então não o
procurei. Sempre rezei por ele... Por fim o perdoei. Na época ele estava muito
perturbado, inconformado e tentou fazer o melhor por mim. Disso eu tenho
certeza. Talvez se tivéssemos casado o rumo de nossa vida fosse outro, mas
alcançaríamos a felicidade com aquela mulher me odiando?
-- É... tens razão. Tivestes
uma vida boa? – Atreveu-se Rosane.
-- De certa forma sim. Tinha
o meu trabalho, o meu cantinho. Mas meu coração secou. Nunca mais me interessei
por ninguém. Todo o meu amor foi para o Leo. A minha vida, a minha juventude
ficou com ele.
---
O que Marilda não sabia é
que depois da morte dos pais, Leopoldo muitas vezes pensou em ir buscá-la para
continuar a vida, de onde parou, para continuar ao lado de sua amada.
Mas ele nada sabia dela.
Sabia aonde morava.
Todavia não sabia se ela o
aceitaria outra vez, se o perdoaria por ter sido tão duro, por não ter cedido
aos seus apelos...
E se ela estivesse casada...
Ah... Esse pensamento o
afligiu...
Pensar que a sua amada
poderia estar nos braços de outro o perturbou, tanto que tentou terminar com a
própria vida.
Agora nada mais poderia ser
feito.
Parentes o levaram para o
campo...
Viveria com suas lembranças...
Maria Ronety Canibal
Agosto 2022
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