sábado, 6 de agosto de 2022

LEMBRANÇAS






 

                                                 Lembranças...

 

A fotografia de uma casa antiga, na internet, despertou a atenção a Marilda. Ela conhecia muito bem aquela casa, conviveu com os moradores, e com a tragédia que se abateu sobre suas vidas.

Imediatamente, as lembranças de um passado feliz, vieram a sua mente, um tempo distante, que não volta mais. Lágrimas surgiram e escorreram por suas faces.

-- O que está acontecendo? -- Perguntou Rosane, sua amiga. – Por que estás chorando?

-- Essa foto... – Disse Marilda mostrando a tela do computador. – Me fez lembrar um velho amigo, o Leopoldo Chemisch. O Leo, como o chamávamos. Ele morava nesta casa...

-- Queres me contar? Parece ser uma história interessante... – Afirmou Rosane.

-- Sim. Mas, primeiro deixe-me me recompor... – Pediu Marilda  Glasmam, secando as faces.

-- Eu vou fazer um cházinho enquanto isso. – Falou Rosane levantando-se e indo em direção a cozinha.

Marilda e Rosane eram amigas de longa data, eram professoras, haviam trabalhado na mesma escola. E hoje aposentadas, dividiam um apartamento, no bairro São João, em Porto Alegre.

Marilda ficou órfã muito cedo, não tinha irmãos e era solteira; e Rosane era viúva, não tinha filhos e seus irmãos moravam em Tiradentes do Sul. Sendo assim, elas decidiram cuidar-se mutuamente, afinal, estavam ficando velhas.

-- Aqui está, um chá de camomila, vai te acalmar. E sou toda ouvidos... – Disse Rosane acomodando-se na poltrona perto da janela.

Depois de alguns goles de chá, Marilda se animou a contar a sua história de amor.

Eu era muito jovem quando meus pais se acidentaram e morreram. O sr. Walter, pai do Leo, era um bom amigo do meu pai. Dona Erna tornou-se uma grande amiga de minha mãe. Eram como irmãs. Os casais frequentemente se visitavam, e eu desde pequena adorava o Leo. Ele era um pouco mais velho do que eu, e também filho único, pois a Ana, sua irmãzinha morreu ainda bebe. Não chegou a completar dois anos.

Quando nos encontrávamos ele sempre me tratava bem, cuidava de mim, me protegia. No princípio eu achava que ele via em mim a sua saudosa irmã. Éramos ainda crianças.

Mas, o tempo passou, crescemos, e eu fui percebendo que ele se interessava por mim. Me lançava olhares e sorrisos, me levava para passear, às vezes me dava um presentinho. Eu adorava toda essa atenção. Pois eu gostava muito dele.

Eu tinha 16 anos e ele 19, quando afinal, começamos a namorar. Nossos pais ficaram contentes. Era tudo o que eles queriam.

Após aquela tarde chuvosa fatídica, em que perdi meus pais, eu fiquei desorientada, sem saber o que fazer. Não tinha mais ninguém no mundo.

Meus pais eram alemães, eram recém casados quando decidiram fugir da guerra, que se alastrava na Europa. Eles vieram direto para o sul do Brasil, e se estabeleceram aqui na capital. Eu nasci  eles já estavam estabelecidos aqui em Porto Alegre.

Meu pai era químico e vidreiro, e foi trabalhar com o sr. Walter, que tinha uma fábrica de artefatos de vidros. E assim nasceu a amizade entre as famílias. Laços fortes que faziam as famílias da mesma origem e religião, se unirem e ajudarem-se mutuamente.

E foi o que aconteceu.

A morte prematura de meus pais, fez com que dona Erna me acolhesse em sua casa, ela era uma pessoa maravilhosa... Passei a viver com aquela família.

Como estávamos comprometidos, o seu Walter sugeriu que apressássemos o casamento. Porque era um tanto constrangedor a noiva viver na mesma casa do noivo. “Os vizinhos vão falar.” Dizia ele.

Leo acatou a vontade do pai e colocamos as alianças de noivado, e logo marcamos a data do casamento. Seria no início de julho, no período das férias escolares. Assim poderíamos sair em lua de mel. Iriamos para Caxias do Sul.

Eu ainda estudava, tinha apenas 18 anos, todavia estava feliz, muito feliz. Enfim eu realizaria o meu grande sonho. Casar com o Leo sempre foi a minha fantasia.

Tudo estava correndo bem.

Até que naquela tarde quente de fevereiro, algo explodiu na fábrica, e o Leo foi atingido no rosto, sobretudo nos olhos. Perdeu a visão!

Seus olhos foram feridos com vidro incandescente. Foi horrível! Não gosto nem de lembrar... Ele urrava de dor... Coitado! Ninguém merece uma coisa assim.

Ele que sempre foi um rapaz honesto e sincero, ser castigado dessa forma... Eu fiquei revoltada. Até hoje sou.

Então tudo mudou...

Todos nós entramos em pânico!

A curiosidade era saber como o Leo reagiria?

Eu o amava tanto, que não me importava com a cicatriz feia que ficaria, tão pouco com a falta de visão. Eu estava pronta para dedicar a minha vida a ele.

Sabia o quão difícil devia ser. Ele que sempre foi uma pessoa ativa, alegre, observadora, apreciador de uma boa leitura... De repente ficar na escuridão!

Era evidente que ele não seria mais o mesmo.

Assim como eu, ele também não aceitava a situação. Estava inconformado e revoltado com a vida. Sentia-se punido por algo que não fez.

Até hoje me dói o coração, quando penso nisto.

Os primeiros dias ele tinha bandagens e precisou ficar em repouso. E eu passei a sentar em seu quarto, tentando fazer companhia.

Ele estava quieto, calado e não reagia a nada. Por fim desisti de falar. Apenas ficava ao seu lado, tentando perceber todas as suas necessidades momentâneas.

Quando os curativos foram retirados, pude ver a horrorosa cicatriz que ficou. Seu Walter logo providenciou um par de óculos escuros, para evitar que as pessoas vissem aqueles olhos mutilados.

Tentávamos agir com naturalidade.

Como os demais, passei a ajudá-lo a se locomover dentro de casa. Ele estava rebelde, não queria ajuda, saia se batendo e tropeçando, xingando a si mesmo.

Seu Walter o ajudava, sobretudo na hora do banho. Ficava com ele no banheiro, entregava-lhe a toalha e as roupas na ordem de vestir.

Era dona Erna quem servia o seu prato, e agia como se ele fosse uma criança, com a comida toda picada e lhe entregava uma colher. Ela fazia tudo por ele, entregava tudo na mão dele.

E a mim, coube assistir.

Não tínhamos mais momentos nossos... Nem um carinho ou um beijinho trocávamos; não saiamos mais para nossos passeios de mãos dadas, pelas calçadas do bairro. Ele estava se distanciando de mim.

Eu estava desesperada. Pois eu o amava profundamente e sabia que era muito amada. Mas a tragédia que se abateu sobre as nossas vidas, foi muito intensa, e fez tudo mudar.

O tempo passava, a adaptação dele não progredia, pois, seus pais não lhes davam oportunidade de assumir o controle de seus atos. Tudo eles faziam e decidiam por ele, como se o Leo tivesse ficado sem condições de raciocinar.

O Leo não era mais a mesma pessoa!

A alegria e otimismo que regia a sua vida, não mais existia. Tornou-se sombrio e triste. E parte dessa tristeza era causada pela decisão que ele havia tomado.

Eu sei, porque ele mesmo me falou.

Uma tarde de outono, nós sentamos no banco que ficava nos fundos, em baixo de um pequeno caramanchão. Eu muito entusiasmada, comecei a falar sobre o nosso casamento que estava se aproximando.

Ele me deixou falar. E quando eu me calei, ele pegou a minha mão, a beijou e disse-me. “Eu te amo mais do que tudo. Quero a tua felicidade... Te desejo um futuro brilhante... No entanto, eu não posso me casar contigo. Não nessa condição. A minha cegueira não tem cura, não vou mais voltar enxergar. Não quero ser um estorvo em tua vida. Tu és jovem, bonita, inteligente e logo estarás cansada de ter como marido um homem mutilado. Um homem inútil, o qual deverás conduzir pelo resto da vida. Não! Tu mereces uma vida melhor...

Tu mereces um homem que aprecia a tua beleza, o teu sorriso encantador, que perceba no brilho do teu olhar o estado de tua alma. Sim, porque és transparente... Eu não posso mais ver-te...

Fiquei espantada!

Eu não estava acreditando, aquela conversa não estava acontecendo... Me belisquei para saber se era um pesadelo. Mas infelizmente era verdade.

Eu pedi, implorei para que nos déssemos a chance de ser feliz. Foi inútil.  Leopoldo foi implacável! Não levou em consideração os meus argumentos... Ele já havia decido...

Sentindo-me humilhada e rejeitada, naquela mesma tarde arrumei as minhas coisas e sai daquela casa, para nunca mais voltar!

Marilda calou-se...

Rosane respeitou o silencio. Observava a amiga. Ela tinha ficado muito abatida. Era melhor encerrar a conversa. Outra hora indagaria sobre o que aconteceu depois que ela deixou a casa.

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A saída brusca de Marilda, abalou Leopoldo profundamente.

Ele havia pensado muito sobre o assunto. Depois do acidente, sua mãe, passou a implicar com a sua noiva. Não permitia que ela se aproximasse dele, que o ajudasse... Que fosse a sua noiva...

E ele sentia falta do toque suave de Marilda.

Seu pai ao contrário, estava animado com o casamento deles, e afirmava que assim ele teria alguém por ele, para o resto da vida, já que os pais não eram eternos. Só sugeriu que eles ficassem morando ali.

Leopoldo começou a imaginar como seria o seu casamento... Não daria certo! Com a sua mãe interferindo a todo instante. Ele queria a felicidade de Marilda e não a aprisionar em um casamento infeliz.

Ele seria um fardo pesado a ser carregado.

Uma tristeza se abateu em seu coração.

Os dias passavam, a data estabelecida se aproximava, uma decisão era imperativa. E assim ele fez a sua escolha. Conversar com Marilda seria uma tarefa árdua. E ele se preparou para enfrentá-la.

Escutar a voz embargada dela, o desespero dela pedindo, não, implorando para que continuassem juntos, foi dolorido. A sua vontade era abraçá-la e ficar para sempre unido a sua querida noiva.

Mas ele não podia exigir dela um sacrifício de vida, e uma aflição tão grande. Com o coração partido, ele se manteve firme, e não cedeu aos apelos de Marilda.

Um vazio ficou ao seu lado, quando ela chorando levantou-se e afastou-se dele. O deixando sentado sozinho no meio do pátio.

E para a sua tortura, ela tinha ido embora.

Fugiu dele!

Nem um adeus ele ouviu...

Ele não imaginou que a reação de Marilda fosse tão radical. Sabendo que ela não tinha para onde ir, imaginou que ela ainda permaneceria alguns dias ali.

Uma angustia tomou conta dele. Entrou em desespero. Aonde ela estaria? Ela não tinha ninguém... E começou se questionar se tinha agido certo?

Eles se amavam profundamente, desde a adolescência. Ele nunca pensou em outra garota. Marilda sempre esteve em seus pensamentos... Tinha cuidados para com ela. Adorava aquele seu jeito alegre e matreiro. Apreciava a sua inteligência e a queria sempre a seu lado. Fez muitos planos, eles tinham um projeto de vida feliz.

Mas o inesperado fez uma surpresa...

A vida lhe deu uma rasteira...

E agora além da escuridão, havia em sua vida uma tristeza infinita.

Leopoldo muito angustiado pediu ao pai que descobrisse aonde ela estava morando. Seria mais fácil imaginá-la em um lugar, e não solta no mundo.

Não demorou para seu Walter saber que ela havia alugado um quarto, na casa de dona Ilse Scheneider. Pai e filho ficaram sossegados, ela havia escolhido viver em uma casa de gente decente, não muito distante dali.

Dona Erna, a rotulou como mal agradecida, ora viver e conviver com eles tanto tempo, e depois sair sem ao menos deixar um bilhete... E decidiu que não pronunciaria mais o nome da moça. Achava que essa era forma de ajudar o filho a esquecer, aquela ingrata.

Leopoldo havia comprado um apartamento para eles morarem depois de casados. Muito preocupado com o futuro de Marilda, ele pediu ao pai que transferisse o imóvel para ela. Como desculpa poderia alegar ser pagamento da parte do pai dela na empresa. Pois se ela soubesse que era presente dele, talvez ela não aceitasse. E ele queria garantir, ao menos, um teto para ela viver.

Ele sabia que algum dinheiro ela tinha. Pela morte dos pais ela recebeu as economias do casal, que estavam em uma conta de Caixa Econômica Federal.

Depois de tudo feito, Leopoldo acalmou um pouco a sua consciência. Mas o vazio em sua vida só aumentava, a saudade que sentia do som da voz, da risada dela, dor calor de sua pele, estavam o enlouquecendo.

Ela permanecia em seu pensamento, em seu coração, em sua alma. A aliança de compromisso, que ela havia colocado em dedo continuava ali. E ele não sabia mais o que fazer. A noite recolhido ao seu quarto, ele chorava pelo amor desperdiçado...

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Nós gostávamos das mesmas coisas, das mesmas sensações... – Disse Marilda, de repente, tocando a corrente que usava sempre, com a sua aliança de noivado. -– Sair a passear na chuva era uma dessas coisas. Uma vez, estávamos na praça que ficava próxima a nossa casa, quando começou a chover, em vez de voltarmos para casa, nós sentamos no banco e abrimos a minha sombrinha. Foi engraçado. Nós riamos felizes...

-- E depois que saístes de lá, o que aconteceu? – Quis saber Rosane.

-- Bem eu fui pedir morada na casa da dona Ilse, eu sabia que ela estava querendo alugar o quarto da filha, que recém havia casado. Ela era viúva, costureira e não queria ficar só. Ela me aceitou na hora... Fiquei morando ali um bom tempo. Até que um dia, seu Walter apareceu e me ofereceu este apartamento como pagamento pela parte do meu pai na fábrica. Eu aceitei. Pensei que se era referente a parte de meu pai na sociedade, eu um direito meu, aceitar. Ele me entregou parcialmente mobiliado. Tinha o essencial. Quando vim morar aqui eu já estava fazendo o estágio. Logo consegui uma colocação aqui no São João. E foi onde trabalhei toda a minha vida. Sou grata ao seu Walter. Sempre tive um teto.

-- Nunca mais soubestes do Leo? – Perguntou Rosane muito interessada em saber o que aconteceu com o pobre rapaz.

-- Sempre que eu ia visitar a dona Ilse, ela me falava. Sim, pois ali na vizinhança todos tinham muita consideração pelo Leo, ele era muito querido, e todos ficaram consternados com o acidente. Assim, que os vizinhos não faziam fofoca, apenas contavam uns aos outros o que sabiam. O primeiro a morrer foi o seu Walter. Ver o filho naquele lamentável estado, o abateu profundamente. Ele vendeu a fábrica... E um dia simplesmente não acordou. Já dona Erna viveu mais um tempo. Um problema de pulmão a consumiu. E o em menos de dez anos o Leo estava só no mundo. Depois da morte a mãe, os vizinhos passaram a cuidar dele. Faziam as compras, cozinhavam, limpavam a casa, e conversavam com ele. Segundo sei ele melhorou, não estava mais tão depressivo. Porém um dia ele tentou se matar... Então um primo distante o levou para o interior. E eu nunca mais soube dele.

-- E depois da morte da mãe dele, não pensastes em procura-lo? – Indagou Rosane.

-- Pensei... Pensei muitas vezes... No entanto, eu tinha medo de ser novamente rejeitada. E isso eu não suportaria. E dizia a mim mesma. E porque ele não vem até mim? Então não o procurei. Sempre rezei por ele... Por fim o perdoei. Na época ele estava muito perturbado, inconformado e tentou fazer o melhor por mim. Disso eu tenho certeza. Talvez se tivéssemos casado o rumo de nossa vida fosse outro, mas alcançaríamos a felicidade com aquela mulher me odiando?

-- É... tens razão. Tivestes uma vida boa? – Atreveu-se Rosane.

-- De certa forma sim. Tinha o meu trabalho, o meu cantinho. Mas meu coração secou. Nunca mais me interessei por ninguém. Todo o meu amor foi para o Leo. A minha vida, a minha juventude ficou com ele.

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O que Marilda não sabia é que depois da morte dos pais, Leopoldo muitas vezes pensou em ir buscá-la para continuar a vida, de onde parou, para continuar ao lado de sua amada.

Mas ele nada sabia dela.

Sabia aonde morava.

Todavia não sabia se ela o aceitaria outra vez, se o perdoaria por ter sido tão duro, por não ter cedido aos seus apelos...

E se ela estivesse casada...

Ah... Esse pensamento o afligiu...

Pensar que a sua amada poderia estar nos braços de outro o perturbou, tanto que tentou terminar com a própria vida.

Agora nada mais poderia ser feito.

Parentes o levaram para o campo...

Viveria com suas lembranças...

 

                            Maria Ronety Canibal

                                   Agosto 2022

 

 IMAGEM VIA INTERNET

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